conteúdos da página PERIÓDICAS: Crônica
Mostrando postagens com marcador Crônica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Crônica. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A RELEITURA DE CURITIBA


  
Por circunstância da qual pouco lembro, dia desses precisei deslocar-me das cercanias do Juvevê para os prados do Bairro Novo B. Rumo ao até então desconhecido, pensei, naquela manhã, estar vivendo uma legítima expedição de descobrimento: partira de uma Curitiba familiar em direção a uma que a mim era distante, embora tão próxima a tantos outros conterrâneos. A campanha foi longa – digna dos tropeiros! -, entre bocejos, páginas de um livro, três ou quatro linhas de ônibus e reflexões sobre a cidade em que nasci, vivo e redescubro a cada dia, rua e morador.
Distraída com as paisagens estampadas por trás da vidraça rabiscada, a sensação era a de estar diante de uma improvável Curitiba nova. Sim, improvável; ora, não poderia ser novo o meu berço gentil! Mas, assim como ocorre desde que criei minha primeira noção de cidade, lá nos idos dos 300 anos, a terra das Araucárias e dos vampiros despiu-se novamente e revelou-se outra. Ou melhor, também outra. Afinal, Curitiba é uma e diferente a cada descobrimento.
E descobrimento é, se não, uma nova possibilidade de leitura. Ao invés de descobrir, naquela manhã eu, em verdade, reli Curitiba. Assim como a releio em Trevisan, Xavier e Leminski. Assim como a reinterpreto em todo terminal, parque, boteco ou ladrilho da XV. A ideia que sustentamos a respeito de algum lugar pode ser remodelada à medida que damos vazão para outras interpretações possíveis, a partir das novas experiências.  
O desafio reside em permitir-se abrir espaço para revelações quando o olhar está viciado nos julgamentos e soluções simplistas e pouco inspiradores. Remédio não-paliativo para a vista mundana é o exercício contínuo e indelével da leitura; de livros, de filmes, da cidade, de gente, da gente.
Ler – seja lá qual for o objeto a ser decifrado (de Dostoievski ao Osternack) - não apenas cria e fortalece o repertório cultural ou literário de cada um. Ler também provoca novas e, muitas vezes, dantes improváveis perspectivas de interpretação, dilatando as retinas do olhar condicionado ao comum e voltando-as a vieses sutis de análise de, por exemplo, fatos cotidianos, relações sociais, conjunturas históricas e políticas, entre outros.
A metafórica dilatação das perspectivas do olhar, possível a partir da relação íntima com a literatura e com as artes em geral, enriquece as possibilidades de interpretação do mundo e dos múltiplos universos nele contidos. No caso dos amantes de polaquinhas e catataus, o contato com o fabuloso derruba preconceitos e potencializa a releitura da Curitiba perdida e das diversas cidades nela escondidas. No caminho de norte a sul, o ledor simplista apenas julga o rincão distante; o leitor, fruto dos livros e da vida, redescobre a cidade.
Quando leitores são tropeiros em busca de novos horizontes, debruçar-se sobre as linhas vertiginosas da literatura e imbuir-se dos prazeres da leitura são expedições de descobrimento.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

DIFERENTES



Pode ser – ou certamente é – um tanto tarde para rememorar a viagem que fiz no último março. A ocasião, porém, mostra-se propícia; a entrada de um novo tempo tende a ser – e certamente é – a instância ideal para que se olhe para trás e se reflita sobre o que de melhor ou mesmo de pior ocorreu no ano findo. Às margens da virada, retrospectivas de toda sorte invadem a TV, os impressos, as timelines e as reminiscências coletivas, fazendo-nos refletir sobre aquilo que não volta, mas que, quando bom, permanece.
Quiçá o correr de dez meses desde as chegadas e partidas europeias tenha ofuscado algumas minúcias da minha expedição. Já não sei nomear alguns lugares por onde andei, restaurantes em que comi, coletivos que tomei. O tempo, no entanto, não apagou as delícias de uma experiência que, como diria a canção, deixou o gosto e as fotos, além do vibrante anseio de que se repita o quão breve.
Dia desses, dentre tantas coisas das quais eu já não me lembrava mais, veio-me à mente o exato instante em que desci do avião na pista do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Momento sutil, felicidade clandestina. O vento cortante daquele dia 2 de março pareceu-me entrar por cada um de meus poros. Era o átimo que separava quimera e realidade: eu estava, sim, na Europa, ainda que teimasse em não acreditar. O frio imediato sentido depois da rajada, gélida, nada mais foi que o cartão de boas-vindas ao Velho Continente, obnubilado sob o clima nublado que se mostraria onipresente no fim do inverno europeu. O vento que surrou o corpo, marcou para sempre a alma.
Paris, na ocasião, ainda não se despiria; fora apenas uma pausa antes da conexão para Cardiff - a dantes desconhecida capital do País de Gales, prado legítimo da rainha-mãe assim como Inglaterra, Escócia e Irlanda do Norte. Acolhedora, Cardiff foi a primeira escala da incursão que durou 28 dias e percorreu, além da terra dos galeses, também ruas, avenidas e o cotidiano de Inglaterra (em Londres), França (em Paris) e Espanha (em Madrid).
As ruminações, desde então, tornaram-se contínuas. Perenes. As novas vivências dilataram minhas retinas. Depois da viagem, passei a contemplar os dias através das lentes glaucas e enriquecedoras trasladas frente ao meu olhar. Quem viveu coisa semelhante, seja lá em que lugar e circunstância, bem sabe o que os ares e até os ventos de uma terra incógnita provocam: partimos uns, voltamos outros. Melhores? Diferentes.


Musée du Louvre, Paris. Março de 2012.


domingo, 5 de agosto de 2012

A SAGA DO MEU C.U.



Pois lembrei-me de quando eu descobri que os meus nomes do meio, Carolina Ulandovski, viravam C.U. quando abreviados – e do quanto isso podia ser pejorativo. Primeiro, há de se enfatizar o hábito que se tem de abreviar o nome das pessoas - seja por falta de espaço (ora, se não há lugar suficiente para escrevê-los por inteiro, que se abreviem os pós-nomes), seja por pura preguiça. O meu caso? Anna C.U. Azevedo. Sim; o meu nome oficial no boletim da pré-escola, na carteirinha do clube, no grupo escoteiro, no cartão transporte e até mesmo no cartão da minha conta bancária! Decerto, Sueli Regina (vulgo mãe) não estava atenta a esse detalhe tão imprescindível quando foi me registrar.
Enfim, a pequena Anna estava na 2ª série. Ao fim do bimestre, a professora entregava aos pais um envelope com todas as atividades que o aluno desenvolvera naquele período. Fui para casa, feliz e orgulhosa com o meu envelope em mãos, na ânsia de mostrar os trabalhinhos à Sueli. Na frente do envelope, um coelho com bolinhas de crepom. E um Anna C. U. bem vistoso, escrito com caneta hidrográfica em letras cursivas. No auge da minha inocência pueril, eu não tinha percebido nenhum problema. Tinha até achado a letra da professora linda! Mas, quando cheguei em casa, a dura realidade: duas tias minhas começaram a rir do meu C.U. à mostra. E a pobre da criança sem saber o porquê – afinal, se eu sequer sabia o significado do cu comum a todos, quem dirá eu entenderia a relação entre ele e o meu C.U.?
A partir daquele dia, passei a conhecer a imensidão de piadinhas que uma pessoa que tem um C.U. no meio do nome tem de ouvir durante a vida. Mas, se antes eu escondia, hoje não tenho o menor pudor: sou Anna C.U. com muito amor.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O BAIRRISMO PARANAENSE NA FINAL DA COPA DO BRASIL



Em tempos das decisões dos mais relevantes campeonatos disputados por equipes brasileiras no primeiro semestre (a ver, Libertadores da América e Copa do Brasil), sempre me deparo com manifestações inflamadas do velho discurso "valorize o futebol do seu estado" e com as consequentes defesas - por vezes ofensivas! - desse viés um tanto quanto bairrista.


Charge: Los Três Inimigos, por Tiago Recchia (Gazeta do Povo).

Por conta do segundo jogo da final da Copa do Brasil, que vai ser disputado entre Coritiba e Palmeiras, esta quarta-feira será um dia em que as timelines do Facebook e do Twitter serão bombardeadas por tais comentários, no pior estilo "transmissão simultânea" by globoesporte.com.
NÃO sou hipócrita e NÃO endosso o regionalismo - pelo menos, não no futebol. Assim sendo, eu realmente desejo que o Coxa, assim como no ano passado, NÃO se sagre campeão. Mas, ao contrário do que se poderia supor, não digo isso tão somente pelo fato de ser atleticana paranaense - e aqui, sim, cabe ressaltar o "paranaense".
Desde que comecei a me interessar por futebol, no início da década de 90, eu torço pelo verdão do Palestra Itália - e não vejo mal algum em minha torcida. Aliás, qual é o transtorno ou o incômodo que isso pode suscitar na vida dos que adotam a postura "sou do Paraná, torço para os times daqui"? Até porque, se houvesse, de fato, problema e, mais, se teoria e prática defendessem o mesmo escudo, muitos desses pseudo-moralistas NÃO desfilariam por aí com suas camisas do Barcelona, do Chelsea ou até mesmo da seleção da Argentina. Demagogia pouca é bobagem.
Assim como na escolha por determinada religião ou por uma bandeira política, cada um é livre para vibrar pelo time que bem entender, seja o clube do Paraná, do Acre ou de El Salvador.
Portanto, hoje, ilustres anti-"elite", anti-eixo ou anti-qualquer-coisa-que-não-seja-do-estado de plantão, respeitem a quem, assim como eu, é de Curitiba e torce pela Sociedade Esportiva Palmeiras. Afinal, NÃO há problema em ser fã de um esquadrão que fascinou muitos torcedores - inclusive paranaenses! - com os bi-campeonatos paulista e brasileiro em 93 e 94. Por sinal, uma época em que a dupla Atletiba minguava nos prados da 2ª divisão do nacional e mal despertava interesse nos novos hinchas daqui, que, aos pares, passaram a torcer pelo recém-fundado Paraná Clube.
De toda forma, boa sorte a ambas as equipes finalistas. Independente da federação a que pertença, que vença a mais competente. E, sem essa de bairrismo barato, dá-lhe Porco, o alviverde imponente!

terça-feira, 29 de março de 2011

AO DOBRAR DOS SINOS

Entre graves e agudos, o som que ecoa das torres da catedral rege o compasso da rotina no coração de Curitiba


Badalo. Badalo. Badalo. Badalo. Infalíveis uma vez mais, os sinos da Catedral Basílica de Curitiba avisam aos transeuntes das imediações da Praça Tiradentes que está findo mais um quarto de hora. A cada vez em que o ponteiro maior de cada relógio da igreja matriz vence a barreira dos quinze minutos, as ações ao redor do marco zero ganham a regência do som que ecoa das torres da catedral. Som que faz parte da memória auricular e da rotina dos curitibanos que por ali passam diariamente.
A mãe anda apressada com o filho no colo. As pombas voam por sobre o carrinho de pipoca. O Ligeirinho Bairro Alto/Santa Felicidade acelera e avança o sinal. Os sinos tocam. A senhora busca refúgio à sombra da árvore. Namorados beijam-se num dos bancos da praça. O turista posa para foto ao lado do táxi curitibocamente alaranjado. E os sinos tocam outra vez.
Poucos, porém, são os que reparam nesse ruído tão próprio do centro da nossa cidade. Isso porque a cadência do cotidiano impõe-se frenética. Mal se tem tempo para prestar atenção na paisagem onde se desenvolvem as ações corriqueiras da Curitiba metrópole. Em meio à disritmia do vai-e-vem de pernas e pensamentos, o que quase sempre está em evidência são os fatos - não o cenário em que a história do dia-a-dia é desenhada.
Quando o palco do espetáculo torna-se o foco, é possível perceber o quão harmônicos são os elementos que regem o pulsar do coração curitibano. À luz do colorido das flores e da gente, a evolução dos passos e compassos ao redor da catedral parece poética. E o dobrar intermitente dos sinos dá o tom àquele pedaço de Curitiba, ecoando por entre as ruas do centro e os ouvidos dos que por elas andam.
Localizada onde a cidade nasceu, a catedral é um dos ícones afetivos da região. É natural que o retumbar dos sinos também seja. Numa conversa informal com comerciantes dali, o comentário, sempre carinhoso, chega a ser redundante: “é um barulho que já faz parte da nossa vida”.
Na sacristia da catedral, um senhor me contou que o ritmo dos sinos, hoje, é totalmente automatizado e é de responsabilidade do Seu Dorvílio, funcionário da paróquia há mais de vinte anos. Basta que ele programe alguns botões para que os badalos soem no tempo e na cadência certos. Entre graves e agudos, mais ou menos harmônicos, a sinfonia varia de acordo com o aviso a ser dado. O tilintar do bronze ressoa em todas as horas cheias, a cada quinze minutos e no horário das missas do dia - a ver: de segunda a sábado, ao meio-dia e às seis da tarde; no domingo, às 8h30, 10h e 18h.

Anna Carolina Azevedo, 25, é jornalista, entusiasta das letras e guria de Curitiba (com orgulho e sotaque!).
*
Este artigo integra "TERRITÓRIO - Não muito longe do Marco Zero", especial do jornal Gazeta do Povo em homenagem aos 318 anos de Curitiba.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

NICE TO MEET YOU, MR. SINGH



Apesar dos cabelos timidamente grisalhos, aquele homem sustentava espírito e aparência jovens. O cavanhaque e o rabo de cavalo, preso por um elástico azul, conferiam-lhe ares de músico de blues do Bronx nova-iorquino e eram apelos tentadores para uma conversa informal. Hey, man, what’s up? – pensei ao me aproximar. O protocolo da situação e o exigido respeito àquela autoridade científica, no entanto, levaram-me a balbuciar, apenas, um educado Nice to meet you, Mr. Singh.


A postura de certa forma desembaraçada não encobria a elegância intelectual que se estampava no rosto afilado, por trás das lentes de um óculos disposto em armação retangular. O homem era deveras inteligente. Em passos que iam e vinham pelo salão de conferências, estava ansioso pelo início das atividades previstas para aquele sábado nublado, 13 de novembro de 2010.


O intelectual do semblante descontraído e da cabeleira peculiar era Gurkirpal Singh, 49, um dos maiores peritos mundiais na discussão sobre diretrizes e balizas regulatórias para medicamentos biológicos e convidado do I Fórum Nacional de Biossimilares.


Dr. Singh, professor na Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, na Califórnia, é consultor da U.S. Food and Drug Administration (FDA), onde coopera na discussão sobre a regulamentação de biológicos inovadores e de similares. O conhecimento de causa o habilitava a proferir, com perícia e argumentos bastante estruturados, a palestra Regulatory Pathways in USA and Europe, que tratou sobre aspectos de segurança na fiscalização da produção de biomedicamentos nos contextos europeu e norte-americano. Certamente, uma fala obrigatória em um evento que se propunha a discutir parâmetros de regulamentação dos biossimilares.


Durante seu discurso, a inquietação científica articulava-se por meio da eloquência que, ainda que notadamente abundante, talvez não conseguisse acompanhar à rapidez de seu raciocínio. As mãos, também inquietas, pareciam extensões de seu cérebro, aflitas em contribuir com aquilo que era expresso pelas palavras.


Em linhas gerais, a mensagem de Singh enfatizou a importância da regulação específica aplicada à produção de biossimilares - tal como já ocorre em países como Taiwan, Malásia, Austrália e Suíça, por exemplo. A regulamentação visa ao controle e à supervisão durante as etapas da bioprodução, as quais devem atentar a medidas que garantam qualidade e conformidade dos medicamentos similares com as balizas técnicas.


Gurkirpal Singh nasceu na Índia. A pele em tom amorenado, tão característica a cidadãos naturais da Ásia Meridional, o faria passar por brasileiro. Aliás, Mr. Singh é um entusiasta da nossa terra brasilis – da cultura popular à produção acadêmica. Sobre o cenário nacional dos medicamentos biológicos, comentou: “estou esperançoso de que o Brasil siga todos os parâmetros da comunidade cientifica”.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

CICLOVIA: A MORTE ESTÁ AO LADO

PARTE III - FINAL


[... guarda esse que não percebera nada incomum naquela tarde antes da repentina chegada da viatura do POVO em frente de sua guarita]

Mas o guarda não pôde deixar de notar as tantas pessoas que passaram a acompanhar o mistério do cadáver. E passaram a se juntar, umas atraídas pelas outras. E passaram a reparar em cada detalhe daquele cenário. E passaram a antever as próximas ações.

Diante dos olhares da gente entretida pela mesma razão, a escada extensível do caminhão foi rebaixada até o fundo do fosso, uns cinco metros abaixo. O soldado Mazepa desceu. Mas, ao descer do bombeiro, a atenção se voltou à outra cena bizarra: um rato tentava subir o primeiro dos degraus da escada. Era o esforço “sobrenatural” do roedor para alcançar os 30 centímetros que o separavam de uma tentativa de fuga. Sem êxito. A água do esgoto, impregnada em seu pelo, o fazia escorregar.

O soldado chegou perto do corpo. Bem perto. Olhou. E nada mais. Apenas os peritos teriam a permissão para abordagem e remoção do cadáver. Muito tempo depois a viatura da Polícia Científica finalmente chegou. E demorou a chegar.

Deram, pois, início à perícia na área onde repousava o cadáver, realizando uma série de procedimentos de análise criminalística. Eram os costumeiros exames periciais realizados por quem leva a vida se deparando com a morte. Entre baforadas de um cigarro recém-aceso, um dos legistas sentenciava: “Morreu! Morreu o fia da puta”! A sangue frio, o homem ria da morte que, a ele, era apenas mais uma.

Coleta, identificação e checagem de possíveis evidências. Fotos e anotações e hipóteses. No caso do homem jogado no canal do Belém, apenas burocracia. Nada se podia supor sobre a origem do morto. Não aparentemente. Não antes de uma análise mais profunda e contundente, que, possivelmente, nem aconteceria. Era um corpo. Apenas mais um corpo. Um corpo que não faria falta.

Pouco além, entraram em cena os legistas do Instituto Médico Legal. Além dos visíveis hematomas nas costas, os peritos encontraram marcas de violência na cabeça e no rosto desconfigurado. À tardinha, quase no crepúsculo daquela noite de verão, removeram o corpo que, mais tarde, não seria identificado. Talvez por falta de evidências suficientes que pudessem apontar conclusões sobre o crime. Talvez por falta de relevância daquela morte. Daquele resto de vida largado no esgoto.

Em tempo: só no fim de semana do dia 8 de fevereiro, 26 assassinatos foram registrados na grande Curitiba. O cadáver da ciclovia foi relegado a uma nota despretensiosa e derradeira num jornal da cidade:
Mais um.

(Essa é uma história real.)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

CICLOVIA: A MORTE ESTÁ AO LADO

PARTE II


[Os olhares mais atentos viram e não deixaram de enxergar: perto da grama verdinha que vende Curitiba, havia um corpo falecido, entre ratos e dejetos]

Uma viatura do Projeto POVO da Polícia Militar do Paraná chegou ao local, pouco depois dos chamados ao 190. Dois soldados, que estavam fazendo ronda na região dos bairros Juvevê e Cabral, desceram descontraídos do carro, ao som gritante de Miles away, música de Madonna. Era a trilha sonora do encontro entre os policiais e o corpo.
Logo, um caminhão da 1ª Brigada do Corpo de Bombeiros também ali estava. Dele, desceram quatro bombeiros soldados. Um, de pós-nome Mazepa, se prostrou à beira do canal, com o olhar escondido atrás de um óculos Ray Ban. Dali avistou o cadáver, que, a essa altura, atraía não apenas o bombeiro, mas também ciclistas e pedestres, entorpecidos pelo interesse indiscreto em saber o que acontecia. O que despertaria a atenção das pessoas na beira de um esgoto, em um domingo de sol?
A razão era a improvável presença de um homem morto. A cena, ainda que trágica, era excitante demais. E, agora, já não passava despercebida. Uma multidão de curiosos, a exemplo de João Paulo, Maicon e Jhonatan, se aglomerou à beira daquele trecho do rio. Estavam todos – cadáver e populares - a poucos metros de um posto da Secretaria da Defesa Social de Curitiba, onde um guarda municipal cumpria plantão; guarda esse que não percebera nada incomum naquela tarde antes da repentina chegada da viatura do POVO em frente de sua guarita.

(continua nos próximos posts)

segunda-feira, 30 de março de 2009

CICLOVIA: A MORTE ESTÁ AO LADO

PARTE I


Curitiba, oito de fevereiro de 2009, um domingo de sol. Longe do mar e em um cenário como esses, visitar parques e praticar esportes se tornam umas das (poucas) opções de lazer no fim de semana da capital paranaense. Em direção a um dos 26 parques curitibanos, os mais de 100 km de ciclovias que atravessam a cidade são a atração mais movimentada aos sábados e domingos. Um programa gratuito, saudável e ecologicamente correto.

Bairro do Ahú, região central. Às margens do Rio Belém, na ciclovia que segue em direção ao Passeio Público, João Paulo, Maicon e Jhonatan pedalavam distraídos, como tantos outros meninos, em meio ao vai-e-vem de bicicletas. Os guris, no auge de seus 15 ou 16 anos, faziam daquela tarde de verão um dia para sair do Bairro Alto – onde moram – e passear, quase sem rumo, montados em suas bikes vermelho tijolo, verde metálica e bordô.

Mas já no caminho de retorno, uma paisagem se ergueu súbita em frente aos três; paisagem estranha ao que se costuma ver nas rotas dos ciclistas. João Paulo, Maicon e Jhonatan correram afoitos em direção ao inesperado. E se aproximaram o suficiente para avistarem, incrédulos, o corpo de um homem jogado no canal do Belém. Seria fúnebre demais para que fosse verdade. Mas era. Na galeria de um rio que há muito virou esgoto, repousava a carcaça de um cadáver.

E assim era o que se via: um homem de bruços, cabelo raspado à máquina, calça de moletom azul, camisa aos trapos manchada pela água suja e densa. Nos pés, um par de um modelo Nike Shox. No corpo de costas, aparentemente não havia marcas de sangue. Ainda assim, era possível ver uns quatro ou cinco hematomas inchados nas costas descamisadas. Por certo, resultado dos obstáculos no macabro percurso do corpo na canaleta do rio.

Como os três meninos, uma família que por ali passava também percebeu o homem, prostrado em sua morte. Os olhares mais atentos viram e não deixaram de enxergar: perto da grama verdinha que vende Curitiba, havia um corpo falecido, entre ratos e dejetos.
(continua nos próximos posts)

sexta-feira, 11 de abril de 2008

ENCONTRANDO O INDOMÁVEL

“Há rumores de que um cara está construindo um barco no Bairro Alto”



O assunto já estava em pauta há, pelo menos, duas semanas. Ainda assim, em todo esse tempo, nenhum repórter do Zona Leste havia se deslocado para checar a informação. Alguns colegas de redação estavam, de fato, ocupados com coberturas mais emergenciais. Contudo, um outro contingente, aparentemente disponível, não demonstrou interesse pela pauta. Dessa maneira, a história do barco acabou por ficar na gaveta durante algum tempo – precisamente, desde o dia 25 de março.
Sexta-feira, 4 de abril de 2008, 19h22. Após constatar que a pauta, uma vez mais, não estava nos planos de cobertura da editoria para aquela edição do jornal (nº. 05), decidi conferir a veracidade dos boatos. A minha tarefa: encontrar, em meio à escuridão que já se impunha naquele começo de noite, o tal do morador que estaria construindo uma embarcação.
De imediato, não havia nomes, fontes e, tampouco, endereços precisos que pudessem servir como norteadores para a minha busca. A única informação era a de que o suposto barco estaria ‘ancorado’ em alguma rua próxima à agência do Banco do Brasil – nas imediações da estação-tubo China.
Os dados faltavam, mas a curiosidade, a essa altura, já era grande. Não havia outra opção, portanto, a não ser ‘embrenhar-me’ pelas estranhas do Bairro Alto para encontrar a história. Acionei, então, uma unidade móvel do ZL (leia-se: o carro da minha mãe) e fui em direção à rua José de Oliveira Franco – o endereço da agência bancária.
O próximo passo? Os botecos são sempre ótimas fontes de informação. A vida dos bairros é contada, diariamente, nas mesas dos bares. À primeira vista, nenhum barzinho. Na falta de um, resolvi adentrar em uma vídeo-locadora. Encontrei dois garotos.

- “Boa noite. Por acaso, vocês já ouviram falar de um cara que está construindo um barco aqui por perto”?

-- “Barco?” – um deles indagou – “Ahhh, o Domador”!

Para a minha sorte, logo na primeira abordagem, já havia obtido a confirmação de que a história era verídica. O garoto, então, me repassou as coordenadas do local onde estaria o barco. Antes que eu partisse, no entanto, ele se corrigiu.

-- “Ah, e não é Domador... O nome do barco é Indomável”.

Entrei no carro. Dei meia-volta. Atravessei a principal. Depois de uma quadra, virei à direita. E à direita novamente. Foi quando, em uma ruazinha mal iluminada, eu avistei o Indomável. De primeira impressão, um susto: tratava-se de um barco de ferro (ao contrário do que supunham as minhas expectativas em encontrar uma embarcação de madeira – no melhor estilo ‘a arca de Noé’).
Aliás, no trajeto da faculdade até a locadora, não conseguia imaginar nada além de uma arca construída por um seguidor inveterado das tábulas da Sagrada Lei (vide o filme Todo Poderoso II).
Sem parar de olhar para o barco, bati palmas em frente ao portão daquela casa da rua Adílio Ramos. Fui atendida por uma mulher tímida, que vestia um sobretudo preto. Era Lenir Siqueira. Falei que tinha interesse em saber sobre a construção do veleiro. E, em instantes, já estava à porta o idealizador da embarcação, Pedro Luiz Costa, serralheiro, 45 anos, marido de Lenir.
Fui convidada a entrar e a ouvir a incrível história de um homem que tem por grande desafio pessoal a construção de um barco, a próprio punho. Ao contrário do que eu pensava, não, ele não é movido por medo de um possível dilúvio. A verdadeira inspiração que move Pedro a construir uma embarcação de 29 pés, sob os olhares curiosos de todos os vizinhos, é uma só: ele quer viajar pelos sete mares.


Na última edição do Capital da Notícia Zona Leste, vocês, caros leitores, conheceram um pouco sobre a história do ‘barco do Bairro Alto’. Agora, cabe a vocês acompanharem, de perto – através dos rumores do bairro -, o desfecho dessa história: Pedro conseguirá velejar mundo afora com seu Indomável?

sábado, 22 de março de 2008

DA FONTE À PROVIDÊNCIA


Quando mais nova, fui matriculada no antigo e tradicional Colégio da Divina Providência, no Ahú de Baixo. O ano era 1996. Eu, então com 10 anos, estava a cursar a 5ª série.
A nova escola revelava para mim,
uma aluna recém transferida de uma escolinha bairrista perdida nas entranhas do Boa Vista, uma realidade curiosa a cada dia.
Dali, o que mais impressionava eram as particularidades do espaço físico. O Divina Providência quedava onde, nos anos 40 e 50, funcionava o famoso Cassino do Ahú,
a todo fervor e glamour. Em 1952, as irmãs da congregação que dava nome ao colégio compraram o terreno e os imóveis da luxuosa casa de jogos. E instalaram, além da nova sede da instituição de ensino, o lar provincial das freirinhas, chamado de provincialado.
De herança do cassino, restaram, além do pomposo salão e da casa de orações, as instalações de uma piscina olímpica. Nos corredores do colégio, rondavam lendas de que muitos apostadores, após derrotas e falências nos jogos de azar, ali tentaram suicídio. Alguns teriam obtido êxito! Mas, em 1996, a piscina já não mais impelia (tanto!) medo ao imaginário das criancinhas divinenses: estava vazia e desativada havia mais de 15 anos.

A minha curiosidade, porém, era deveras instigada por um outro lugar do colégio. Tratava-se de uma espécie de manancial coletivo; era cercado por uma mui antiga construção com altas janelas, adornada por azulejos em sua face externa, que formavam um grande painel com a imagem de dois índios bebendo água de uma nascente. De dentro daquela estrutura, saía uma tubulação que, por fim, desembocava em uma bica que jorrava água pura e cristalina.
Durante incontáveis recreios junto à bica, meus pensamentos corriam longe. "Teriam índios também bebido da fonte da Divina Providência"?
As dúvidas da infância só foram, em parte, respondidas quando, alguns anos mais tarde, tive acesso ao 17º fascículo da "Coleção Bairros de Curitiba", de autoria do viajante das entranhas curitibanas, o Urbenauta Eduardo Fenianos.
Em tempo: o título do tal volume? Ahú e São Lourenço: Da Fonte a Providência. Vale a leitura. E digo: não apenas aos ex-freqüentadores do cassino, antigos alunos do Divina ou irmãzinhas do provincialado.