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domingo, 5 de agosto de 2012

A SAGA DO MEU C.U.



Pois lembrei-me de quando eu descobri que os meus nomes do meio, Carolina Ulandovski, viravam C.U. quando abreviados – e do quanto isso podia ser pejorativo. Primeiro, há de se enfatizar o hábito que se tem de abreviar o nome das pessoas - seja por falta de espaço (ora, se não há lugar suficiente para escrevê-los por inteiro, que se abreviem os pós-nomes), seja por pura preguiça. O meu caso? Anna C.U. Azevedo. Sim; o meu nome oficial no boletim da pré-escola, na carteirinha do clube, no grupo escoteiro, no cartão transporte e até mesmo no cartão da minha conta bancária! Decerto, Sueli Regina (vulgo mãe) não estava atenta a esse detalhe tão imprescindível quando foi me registrar.
Enfim, a pequena Anna estava na 2ª série. Ao fim do bimestre, a professora entregava aos pais um envelope com todas as atividades que o aluno desenvolvera naquele período. Fui para casa, feliz e orgulhosa com o meu envelope em mãos, na ânsia de mostrar os trabalhinhos à Sueli. Na frente do envelope, um coelho com bolinhas de crepom. E um Anna C. U. bem vistoso, escrito com caneta hidrográfica em letras cursivas. No auge da minha inocência pueril, eu não tinha percebido nenhum problema. Tinha até achado a letra da professora linda! Mas, quando cheguei em casa, a dura realidade: duas tias minhas começaram a rir do meu C.U. à mostra. E a pobre da criança sem saber o porquê – afinal, se eu sequer sabia o significado do cu comum a todos, quem dirá eu entenderia a relação entre ele e o meu C.U.?
A partir daquele dia, passei a conhecer a imensidão de piadinhas que uma pessoa que tem um C.U. no meio do nome tem de ouvir durante a vida. Mas, se antes eu escondia, hoje não tenho o menor pudor: sou Anna C.U. com muito amor.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

DA ARTE


Se queres a morte
Separa-te da arte

A beleza da forma
Faz-me vislumbrar a vida
À margem da pragmática
Realidade (co)medida

Distante do discurso vão
Desprendo-me do meio
Entorpeço-me com o devaneio
Do bálsamo da ilusão

Se queres a morte
Permaneça-te à parte
Do olhar louco
(E pertinente)
Da arte pela arte.

terça-feira, 17 de julho de 2012

DEVOLVA MEUS LIVROS



Minha filha não volta para casa há mais de quinze dias. Eu estou tentando entrar em contato, ligo para o celular dela. Nem sinal. Ela é assim: às vezes some, vai para Londres e fica dias sem voltar, perdida pelos pubs de Camden Town. Dessa vez, deixou o filho aqui comigo. O pequeno Jason chora a todo instante, chamando pela mãe. Eu não sei onde Jessica está, nem quando vai voltar. Peço desculpas.

Ao fundo da ligação, uma criança grita em desespero. Pelo que parece, a garota sumiu. E com ela, Eclipse, de Stephenie Meyer, cuja devolução está pendente. É um livro bastante procurado pelas adolescentes galesas. Jessica precisa voltar. Sua multa já chegou a dois pounds.
Assim como Jessica, muitos usuários tardam a devolver os títulos que emprestam. Alguns, por poucos dias. Outros passam semanas sem aparecer. Há quem leve mais de ano para retornar. Viagem, doença, acidente, distração, talvez o frio dos últimos tempos. Acontece.
Meu nome é Lucy. Minha missão aqui na Cardiff Central Library é a de avisar aos leitores ausentes que um exemplar de nosso acervo permanece em sua posse há mais tempo do que deveria permanecer. Atrasos, obviamente, não são tolerados. Mas acho que nem todos sabem disso. Se soubessem, eu perderia meu emprego.

É importante que o livro esteja conosco de volta o quão mais breve. Qualquer pessoa pode trazê-lo. A multa é de 10 pence por dia de atraso. Aceitamos doações de títulos britânicos - da trilogia de J.R.R. Tolkien a Virginia Wolf e Huxley. A biblioteca fica aberta de segunda a sábado. Aguardamos a devolução.

Todos os dias, quando chego a The Hayes - o largo onde se localiza a Cardiff Central Library -, espero ansiosa pelas desculpas com as quais os caros retardatários tentarão justificar suas pendências. A de Jessica, ontem, foi a mais comovente da semana. Não sei se pelo abandono do filho. Ou se pelo tamanho da lista de espera dos próximos leitores de Meyer. É incrível como, diante de um acervo com mais de dez mil itens em galês, a nossa língua-pátria, as mocinhas de hoje em dia insistam em ler esses best-sellers americanos. Como diria Orwell, mais rasteiros que as novelas de Ethel M. Dell!
Um cara chamado George emprestou, vinte dias atrás, um clássico de Orwell, seu xará ilustre. Até hoje, não o devolvera, tampouco dera satisfação sobre o sumiço. Tomei o telefone para pedir que Keep the aspidistra flying voltasse para a prateleira dos romances ingleses da década de 30. Era a minha primeira chamada da manhã.

Lucy, você não vai acreditar! Caí da minha moto na semana passada, foi bem feio. Ainda não estou bem. Mas, assim que eu melhorar, faço questão de levá-lo pessoalmente e também de quitar meu débito.

De fato, eu não acreditei. No inverno, as motos eram raras nas ruas de Cardiff. E sobre acidentes com motociclistas, eu não havia lido sequer uma nota no Wales OnLine. Além disso, qual parte de “qualquer pessoa pode trazê-lo” George não entendeu? Da gentileza típica aos britânicos, eu abria mão. Porém, da multa, não - ou alguns pounds seriam descontados do meu próximo ordenado.
A vez, agora, era de Ann, 20 anos, cadastro recentíssimo e um atraso logo no primeiro empréstimo. Harry Potter.

Estive em Newport no último sábado e acabei esquecendo o livro com a minha prima. Eu sinto muito. Vou pedir para que ela venha a Cardiff para trazê-lo, não se preocupe. Obrigada por me lembrar!

Foi sincera, ao menos. Com Ann, não me preocupei. Quem causou preocupação maior foi a próxima da lista: a mal-falada Shana Davis.
Shana era uma desvairada, conhecida por todos que frequentavam os arredores da Queen Street. Vivia trôpega, bêbada e molhada pelas ruas do centro da cidade, entre goles de Irish whiskey e Foster Beer quente, que deixavam a criatura com um bafo digno do dragão vermelho da bandeira de Gales. Em seu bolso, apenas um penny. Um paupérrimo penny! Shana e o penny. Shana miserável!
Era simplesmente inadmissível que ainda emprestassem exemplares para aquela louca. Ela rasurava todos os livros que levava consigo. Shana porca! Um dia, eu ainda a proibiria de entrar na biblioteca – quer dizer, isso se eu conseguisse passar por cima dos diretores da Cardiff Central Library. Eles, assim como tantos outros homens e até algumas mulheres, eram encantados por Shana. Shana maldita!
O telefone chama. Um toque. Nada de Shana. Outro. Ao terceiro, finalmente atendem.
 
Shana? Ah, ela não está. E eu também não faço a menor ideia de onde você poderá encontrá-la.

Shana desgraçada! Partira, poucos dias antes, com um marinheiro que aportara na Cardiff Bay. Em meio à raiva que me consumia, eu até podia imaginar a manchete no Wales OnLine: “Shana em fuga”! E o pior: em fuga com o livro que eu tinha como missão resgatar. O bendito, um título tão raso quanto ela: Os dez mandamentos do amor, por Little Dick Junior.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O BAIRRISMO PARANAENSE NA FINAL DA COPA DO BRASIL



Em tempos das decisões dos mais relevantes campeonatos disputados por equipes brasileiras no primeiro semestre (a ver, Libertadores da América e Copa do Brasil), sempre me deparo com manifestações inflamadas do velho discurso "valorize o futebol do seu estado" e com as consequentes defesas - por vezes ofensivas! - desse viés um tanto quanto bairrista.


Charge: Los Três Inimigos, por Tiago Recchia (Gazeta do Povo).

Por conta do segundo jogo da final da Copa do Brasil, que vai ser disputado entre Coritiba e Palmeiras, esta quarta-feira será um dia em que as timelines do Facebook e do Twitter serão bombardeadas por tais comentários, no pior estilo "transmissão simultânea" by globoesporte.com.
NÃO sou hipócrita e NÃO endosso o regionalismo - pelo menos, não no futebol. Assim sendo, eu realmente desejo que o Coxa, assim como no ano passado, NÃO se sagre campeão. Mas, ao contrário do que se poderia supor, não digo isso tão somente pelo fato de ser atleticana paranaense - e aqui, sim, cabe ressaltar o "paranaense".
Desde que comecei a me interessar por futebol, no início da década de 90, eu torço pelo verdão do Palestra Itália - e não vejo mal algum em minha torcida. Aliás, qual é o transtorno ou o incômodo que isso pode suscitar na vida dos que adotam a postura "sou do Paraná, torço para os times daqui"? Até porque, se houvesse, de fato, problema e, mais, se teoria e prática defendessem o mesmo escudo, muitos desses pseudo-moralistas NÃO desfilariam por aí com suas camisas do Barcelona, do Chelsea ou até mesmo da seleção da Argentina. Demagogia pouca é bobagem.
Assim como na escolha por determinada religião ou por uma bandeira política, cada um é livre para vibrar pelo time que bem entender, seja o clube do Paraná, do Acre ou de El Salvador.
Portanto, hoje, ilustres anti-"elite", anti-eixo ou anti-qualquer-coisa-que-não-seja-do-estado de plantão, respeitem a quem, assim como eu, é de Curitiba e torce pela Sociedade Esportiva Palmeiras. Afinal, NÃO há problema em ser fã de um esquadrão que fascinou muitos torcedores - inclusive paranaenses! - com os bi-campeonatos paulista e brasileiro em 93 e 94. Por sinal, uma época em que a dupla Atletiba minguava nos prados da 2ª divisão do nacional e mal despertava interesse nos novos hinchas daqui, que, aos pares, passaram a torcer pelo recém-fundado Paraná Clube.
De toda forma, boa sorte a ambas as equipes finalistas. Independente da federação a que pertença, que vença a mais competente. E, sem essa de bairrismo barato, dá-lhe Porco, o alviverde imponente!

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A CATARSE HERMANA EM CURITIBA

Em noite inspirada, quarteto toca os grandes sucessos e arrebata a multidão



Antes tarde do que ainda mais tarde, decidi registrar minhas impressões sobre a mais do que esperada e já memorável apresentação do Los Hermanos no festival Lupaluna, em Curitiba, na última sexta-feira (18). Ou melhor: no irromper da madrugada de sábado (19), pois passava da meia-noite quando os músicos subiram ao palco LunaStage para levar ao delírio os milhares de fãs saudosos da banda, que não se apresentava na capital paranaense desde 2006.
         Embora eu tenha evitado conferir o setlist que rolou nas outras cidades pelas quais a turnê em comemoração aos 15 anos de trajetória dos Hermanos até então tinha passado, não resisti à tentação de passar a tarde de sexta ouvindo o registro do show na Fundição Progresso (Sony BMG, 2007). Com isso, acabei meio que prevendo o repertório reservado para o show no Bioparque – afinal, ainda que se concentre no álbum 4 (Sony BMG, 2005), a seleção do dvd resume bem a história musical do bloco de Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Bruno Medina e Rodrigo Barba.
         Apesar da minha torcida (que, em si, já esperava por uma noite, no mínimo, inesquecível), eu não imaginava que o show seria ainda mais surreal do que as minhas expectativas – sem exagero. O Los Hermanos correspondeu à devoção apaixonada da plateia, que não precisou de mais do que os dois primeiros acordes de “O Vencedor” para deixar claro que acompanharia a banda por toda a apresentação, mesmo sob o frio e o sereno curitibanos.
         Depois de um hiato que se prolongava desde a última apresentação dos barbudos, no festival SWU, em 2010, o grupo se mostrou entrosado e muito afim de estar ali, tocando e curtindo a noite, o público e as músicas. A seleção do repertório, os acordes afinados e a dedicação em fazer um bom show consolidaram ainda mais o pensamento de que eu estava diante de um concerto ímpar.

Depois de quase seis anos sem tocar na capital paranaense, o Los Hermanos voltou a Curitiba para fazer uma apresentação memorável. Foto: Lupaluna 2012 (Divulgação)

         Ao todo, foram 19 canções executadas, acompanhadas pelos músicos de apoio (Bubu: trompete; Mauro Zacharias: trombone; Índio: saxofone e clarineta e Gabriel Bubu: baixo, guitarra e voz) e cantadas em uníssono pelo público. Com oito de suas 15 faixas, não foi de se espantar que o álbum Ventura (BMG, 2003) tenha dominado o setlist apresentado no show de Curitiba (o mais curto da turnê, diga-se), afinal é considerado por muitos fãs – inclusive por mim – o mais completo da banda.
         A surpresa (ou nem tão surpresa assim, vide o próprio Fundição Progresso) foi a execução de quatro canções em sequência do álbum de estreia, Los Hermanos (Abril Music, 1999), iniciada pelo megahit “Anna Julia” - que catapultou o quarteto no cenário musical brasileiro e que, durante algum tempo, fora deixada de lado pelo grupo. De Bloco do Eu Sozinho (Abril Music, 2001) e 4, apenas os clássicos: “Todo Carnaval Tem Seu Fim”, “A Flor” e Sentimental (senti falta de "Casa Pré-Fabricada"); “O Vento”, “Morena” e “Condicional”, respectivamente. E antes que pensem que eu errei nas contas, na sequência das introspectivas rolou “Descoberta”, também do primeiro álbum.
         Dentre tantos momentos marcantes no show do Los Hermanos, eu destacaria os já tradicionais confetes e serpentinas que voaram tão logo Camelo entoou os versos do melancólico fim do carnaval, a catarse coletiva em “Sentimental”, “Conversa de Botas Batidas” e "Último Romance" e o momento em que Rodrigo Amarante pulou do palco para, junto aos fãs, cantar “Quem Sabe”. Apoteótico! Isso sem deixar de citar a cumplicidade entre a dupla de compositores e vocalistas, seja trocando olhares, notas e sorrisos, seja interagindo entre si e com os outros integrantes, o baterista Barba e o tecladista Medina (que, em seu twitter, chegou a lamentar a distância do público em relação ao palco).

Bruno Medina (no detalhe), o "quinto hermano" Gabriel Bubu, Camelo - em uma das músicas em que toca baixo - e Amarante no vocal. Foto: Lupaluna 2012 (Divulgação)

         Tenho a impressão de que a apresentação dos Hermanos apesar de curta foi a melhor do festival e olha que eles pouco interagiram com o público. E digo isso não apenas por razões pessoais e "catárticas"; o espetáculo foi musicalmente impecável, além de surreal para os fãs. Ao final de apenas 1h15 de show, ficou a certeza de que a maioria dos espectadores da plateia do LunaStage esteve ali para acompanhar o quarteto, talvez a banda mais representativa do rock brasileiro da década de 2000. Ficou, ainda, a sensação de que esse será um daqueles shows inesquecíveis na vida de quem a ele assistiu. E cantou. E pulou. E se emocionou. "Assim é que se faz"!

quinta-feira, 24 de maio de 2012

RUBEM FONSECA E O SEU EXTERMINADOR


Por Anna Carolina Azevedo


O Exterminador, texto do mineiro de alma carioca Rubem Fonseca, é, sem dúvidas, um exemplar bastante característico das verves temática e estilística do autor.


É preciso enfatizar, antes de qualquer análise textual - formalista ou exegética -, que Fonseca redige esse conto em um contexto de forte censura e cerceamento à produção cultural brasileira. Nesse cenário de pouca ou quase nenhuma liberdade intelectual, uma das formas que a literatura encontra para abordar questões polêmicas - das quais não se podia tratar abertamente, sob pena de repreensão - é o uso de ficções alegóricas, repletas de crítica, ironia e humor negro. É a esse tipo de recurso que o autor recorre no enredo de O Exterminador para tratar, ainda que por meio de uma representação, de certa forma, simbólica, sobre a violência que se instaurara no Brasil às vésperas do Ato Inconstitucional 5 (o qual entraria em vigor no fim de 1968, no governo Costa e Silva).
Sob a ótica de um narrador onisciente – que conhece, portanto, todos os detalhes e vieses da trama -, O Exterminador revela uma visão pessimista de um futuro não-datado (que se infere a partir de passagens como “era tão elaborado quanto o dos antigos astronautas”), em que a violência e a crueldade tornaram-se banais. Considerando o fato de que foi escrito durante o período mais cruel da ditadura militar, pode-se dizer que o texto é uma alegoria, que dialoga com o gênero da ficção científica, de situações de brutalidade que ocorriam naquele período de turbulência decorrente da opressão militar e da reação a ela.
O conto, nesse sentido, é extremamente crítico quanto à questão da violência latente. Mas o interessante é que o autor, no entanto, não escorrega na armadilha do pieguismo apelativo e sensacionalista da maioria dos relatos de torturas da época. N'O Exterminador de Rubem Fonseca, não há a necessidade de ser mais apelativo do que aquela perspectiva de realidade que, em si, já causa choque. Pelo contrário: é o afastamento emocional que suscita o efeito de desconforto no leitor. A indiferença à violência choca.
Fonseca vale-se de um realismo mórbido - que, em sua obra, chega a ser atraente - para narrar sequências inseridas numa estrutura de narrativa policial. O foco narrativo articula-se em terceira pessoa, na figura de um narrador impessoal e objetivo. As atividades dos dois lados do confronto – comando militar e os exterminadores (uma espécie de comando civil) - são descritas, mas não há juízo de valor sobre os personagens. Essa imparcialidade, aliás, sugere a leitura crítica de que qualquer tipo de manifestação violenta é absurda, independente da bandeira que se pretende defender.
A banalização da morte, representada de maneira hiperbólica e explícita, pode ser considerada, além de uma crítica à própria violência da época dos confrontos da ditadura, também uma condenação/oposição ao discurso da mídia sensacionalista que, ao contrário da objetividade de Fonseca, dilacerava as histórias violentas em detalhes grotescos e sanguinários, como se a tragicidade do episódio não bastasse. Aliás, sob esse aspecto, pode-se até definir O Exterminador - também publicado em  O conto brasileiro contemporâneo, de Alfredo Bosi (Cultrix, 2006) - como brutalista quanto ao assunto abordado, mas não em relação à maneira de tratá-lo.
Quanto aos personagens, nenhum possui descrições detalhadas e não se pode afirmar o que pensam ou sentem. De tal modo, nenhum deles é passível de culpa ou remorso. O protagonista, Exterminador R., é caracterizado tão somente por suas habilidades (seja com a arma ou na facilidade em assumir qualquer papel, por exemplo). O distanciamento confere frieza à narrativa. 

1 O Exterminador colocou a automática num coldre especial nas costas, logo acima da região glútea. A arma ficava deitada, o cabo para a direita ou para a esquerda, indiferentemente: o Exterminador atirava com as duas mãos. Com incrível rapidez, o Exterminador sacou a sua 54 Superchata, apontando-a para o peito do Cacique. O Cacique nem piscou. 

A estrutura do texto é um pastiche de uma descrição oficial, tal qual um delegado responsável o estivesse narrando a um escrivão. O vocabulário técnico utilizado lembra um boletim de investigação e o uso insistente de siglas nos diálogos pode até sugerir a impressão de que os personagens não querem que leigos compreendam o que estão dizendo. A pulverização das siglas ao longo do texto aponta para uma ridicularização crítica do autor quanto à presença excessiva delas nos discursos oficiais, policiais e até jornalísticos no período da ditadura militar. E Fonseca tem calibre para tal: o autor trabalhou durante algum tempo na Polícia do Estado do Rio de Janeiro; experiência que lhe rendeu a familiaridade com os assuntos dos gabinetes dos distritos policiais e, principalmente, a habilidade em parodiar um discurso em que foi escolado.
No conto, DEUS é uma sigla para um dito “Departamento Especial Unificado de Segurança”, GASPAR é abreviação para “Gás Paralisante” e IE-IE-IE significa “Irritante Epidérmico Triplo Concentrado” – tiradas claras em relação à igreja, à política e à cultura. Em um ambiente tão criptografado e repleto por mensagens codificadas, nem os próprios usuários das siglas saberiam mais o que é vocábulo, o que é sigla e o que é significado – quanto mais os leigos; circunstância não muito diferente da falta de ordem e de clareza dos discursos oficiais do fim da década de 60, um período obscuro da História do Brasil. Fonseca, imbuído de frieza e ironia típicas à sua literatura, soube criticar o caos social e intelectual de maneira tão certeira quanto o Exterminador R. com a sua 54 Superchata.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

DO JORNALISMO, COMO EU O VEJO – OU GOSTARIA DE VÊ-LO



Em uma sociedade livre e democrática, na qual a mídia detém grande alcance de veiculação, o jornalismo representa muito além do simples (e, por vezes, meramente burocrático) fruto do labor diário de um repórter. O jornalismo, mais do que campo de atuação profissional, é serviço de valiosa função social. Isso porque cabe ao jornalismo não apenas o informar, mas também o formar; não somente o pautar, como ainda o apontar, o debater, o refletir, o denunciar, o educar, o servir, o entreter. Ao cabo, cabe ao jornalismo a relevância e a responsabilidade de atuar na construção de uma sociedade mais consciente e na formação de cidadãos mais atentos ao seu papel no mundo.
Parece certo, pois, que o jornalismo deva apontar para a análise dos conflitos mundiais e para as consequências dessas situações em nosso cotidiano, de modo a incitar o leitor a situar-se como membro de uma comunidade global e a entender-se como cidadão - pelo menos, em uma tese que, em si, é um tanto inspiradora. No entanto, além de suscitar a cidadania que existe em cada um, o jornalismo deveria voltar-se para o que há de humano e de (in)comum em cada um; o revelar do colorido de uma trajetória anônima, o dia-a-dia dos Josés e Marias, as histórias cujas tramas se desenham nas ruas dos bairros, além dos limites dos rincões da vida que ninguém vê.
A prática de um jornalismo mais orgânico representa um parâmetro oposto à brevidade ou ao cerimonialismo que parecem imperar nos textos dos jornais atuais. Ao contrário dos resumos lacônicos e efêmeros dos leads e sub-leads, a reportagem pode valer-se de uma narrativa pormenorizada, que extrapole a frieza dos dados técnicos e, por vezes, chatos das pautas. No exercício de emulação de fatos reais, o texto jornalístico ideal - pelo menos a mim e a quem busca verdade nas linhas grises das gazetas e tribunas - deve expressar detalhes de pessoas, situações, cenários, trejeitos, cores, texturas, cheiros e outras perspectivas sutis. São essas nuances as quais possibilitam a arquitetura de uma narrativa a partir de elementos literários e em consonância com as prerrogativas da qualidade da informação aos leitores. E, o principal: que conferem humanidade ao jornalismo.