Por Anna Carolina Azevedo
O
Exterminador, texto do mineiro de alma carioca Rubem Fonseca, é, sem dúvidas, um exemplar bastante característico das verves temática e estilística do autor.
É preciso enfatizar, antes de qualquer análise textual - formalista ou exegética -, que Fonseca redige esse conto em um
contexto de forte censura e cerceamento à produção cultural brasileira. Nesse
cenário de pouca ou quase nenhuma liberdade intelectual, uma das formas que a literatura encontra para abordar questões
polêmicas - das quais não se podia tratar abertamente, sob pena de repreensão -
é o uso de ficções alegóricas, repletas de crítica, ironia e humor negro. É
a esse tipo de recurso que o autor recorre no enredo de O Exterminador para
tratar, ainda que por meio de uma representação, de certa forma, simbólica, sobre a violência que se instaurara no Brasil
às vésperas do Ato Inconstitucional 5 (o qual entraria em vigor no fim de 1968, no governo Costa e Silva).
Sob a ótica de um narrador onisciente – que
conhece, portanto, todos os detalhes e vieses da trama -, O Exterminador
revela uma visão pessimista de um futuro não-datado (que se infere a partir de passagens como “era tão elaborado quanto
o dos antigos astronautas”), em que a violência e a crueldade tornaram-se
banais. Considerando o fato de que foi escrito durante o período mais cruel da
ditadura militar, pode-se dizer que o texto é uma alegoria, que dialoga com o gênero da ficção científica, de
situações de brutalidade que ocorriam naquele período de turbulência decorrente
da opressão militar e da reação a ela.
O conto, nesse sentido, é extremamente
crítico quanto à questão da violência latente. Mas o interessante é que o autor, no entanto, não escorrega na armadilha do pieguismo apelativo e sensacionalista da maioria dos relatos de torturas da época. N'O Exterminador de Rubem Fonseca, não há a necessidade de ser mais apelativo do que aquela perspectiva de realidade que, em si, já causa choque. Pelo contrário: é o afastamento emocional que suscita o efeito de desconforto no leitor. A indiferença à violência choca.
Fonseca vale-se de um realismo mórbido - que, em sua obra, chega a ser atraente - para
narrar sequências inseridas numa estrutura de narrativa policial. O foco
narrativo articula-se em terceira pessoa, na figura de um narrador impessoal e
objetivo. As atividades dos dois lados do confronto – comando
militar e os exterminadores (uma espécie de comando civil) - são descritas, mas não há juízo de valor sobre os
personagens. Essa imparcialidade, aliás, sugere a leitura crítica de que qualquer tipo de manifestação violenta é absurda, independente da
bandeira que se pretende defender.
A banalização da morte, representada de
maneira hiperbólica e explícita, pode ser considerada, além de uma crítica à
própria violência da época dos confrontos da ditadura, também uma condenação/oposição ao discurso da
mídia sensacionalista que, ao contrário da objetividade de Fonseca, dilacerava
as histórias violentas em detalhes grotescos e sanguinários, como se a tragicidade
do episódio não bastasse. Aliás, sob esse aspecto, pode-se até definir O
Exterminador - também publicado em O conto brasileiro contemporâneo, de Alfredo Bosi (Cultrix, 2006) - como brutalista quanto ao assunto
abordado, mas não em relação à maneira de tratá-lo.
Quanto aos personagens, nenhum possui descrições
detalhadas e não se pode afirmar o que pensam ou sentem. De tal modo, nenhum deles é passível de culpa ou remorso. O
protagonista, Exterminador R., é caracterizado tão somente por suas habilidades
(seja com a arma ou na facilidade em assumir qualquer papel, por exemplo). O distanciamento confere frieza à narrativa.
1 — O Exterminador colocou a automática num coldre especial nas costas, logo acima da região glútea. A arma ficava deitada, o cabo para a direita ou para a esquerda, indiferentemente: o Exterminador atirava com as duas mãos. Com incrível rapidez, o Exterminador sacou a sua 54 Superchata, apontando-a para o peito do Cacique. O Cacique nem piscou.
A estrutura do texto é um pastiche de uma descrição
oficial, tal qual um delegado responsável o estivesse narrando a um escrivão. O
vocabulário técnico utilizado lembra um boletim de investigação e o uso insistente de
siglas nos diálogos pode até sugerir a impressão de que os personagens não querem que leigos
compreendam o que estão dizendo. A pulverização das siglas ao longo do texto aponta para uma ridicularização crítica do autor quanto à presença excessiva delas nos discursos oficiais, policiais e até
jornalísticos no período da ditadura militar. E Fonseca tem calibre para tal: o autor trabalhou durante algum tempo na Polícia do Estado do Rio de Janeiro; experiência que lhe rendeu a familiaridade com os assuntos dos gabinetes dos distritos policiais e, principalmente, a habilidade em parodiar um discurso em que foi escolado.
No conto, DEUS é uma sigla para
um dito “Departamento Especial Unificado de Segurança”, GASPAR é abreviação para “Gás
Paralisante” e IE-IE-IE significa “Irritante Epidérmico Triplo Concentrado” – tiradas claras em relação à igreja, à política e à cultura. Em um ambiente tão criptografado e repleto por
mensagens codificadas, nem os próprios usuários das
siglas saberiam mais o que é vocábulo, o que é sigla e o que é significado –
quanto mais os leigos; circunstância não muito diferente da falta de ordem e de clareza dos discursos oficiais do fim da década de 60, um período obscuro da História do Brasil. Fonseca, imbuído de frieza e ironia típicas à sua literatura, soube criticar o caos social e intelectual de maneira tão certeira quanto o Exterminador R. com a sua 54 Superchata.
gostei do blog, Sueli. crítica ligeira mas funda. abraço e inté.
ResponderExcluirluiz venegas cabeza