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quinta-feira, 11 de junho de 2009

LÍNGUA: VIDAS EM PORTUGUÊS

Documentário exalta diversidade da "nossa língua portuguesa"







Rio de Janeiro, Brasil. Em uma tarde por demais ensolarada, um homem de camisa branca, caprichosamente abotoada até o colarinho, discursa para uma platéia distraída. Passageiro de um ônibus que trafega pelas ruas do Leblon, ele carrega uma carga de balas de morango, separadas em pacotes menores que custam cinquenta centavos cada.


Esse homem oferece as balas aos seus, quem sabe, compradores por meio da fala pedante que, se não atrai pela cena comum em tantos coletivos, surpreende pela persuasão da venda. Ele fala atropelando o estigma do “mero vendedor”, sentenciando seu dicionário esforçadamente rebuscado que, por instantes, lhe confere ares de orador. O homem das balas se detém na tentativa, honesta e desajeitada, de dispensar fino trato não apenas à aparência, quase que ridiculamente engomada. Sua verdadeira elegância está na articulação de seu principal instrumento de trabalho: a língua portuguesa, patrimônio pessoal do vendedor carioca e de outros 200 milhões de habitantes espalhados pelo mundo. Pessoas separadas pela distância, mas unidas pelo idioma falado.


Essa é uma das cenas esboçadas em Língua: Vidas em Português, documentário luso-brasileiro (2002) que mostra que a língua que une pelo vocabulário, pela sintaxe ou por qualquer outra instância gramatical é a mesma que diferencia e confere identidade a povos distantes em suas culturas e em modos de vida.


A peça, dirigida pelo documentarista moçambicano Victor Lopes, expõe em depoimentos de falantes do português, ilustres e anônimos, as relações entre língua e sociedade, na tentativa de estabelecer aspectos em comum dentre a vida certamente distinta nos países que adotam a Língua Portuguesa como um de seus idiomas.


Ainda que o português falado no Brasil, em Portugal, em Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Macau (China), Goa (Índia) ou em outros lugares tenha origens mesmas, ele não é o mesmo. Cada um desses “portugueses” utilizados por povos tão diversos está carregado pela cultura de seus falantes, permeado por heranças íntimas de nacionalidade, edificado em um chão de uma pátria única. Os países são vários. As culturas são ricamente diversificadas. Os esquemas sociais são diferentes. A língua, pois, assim também o é. Mesmo com a alcunha comum, chamada de “Língua Portuguesa”, a língua de povos incomuns não é comum. Ou melhor: é comum em sua origem, em seu passado. Mas o português, já há muito, não é o mesmo em tantos lugares.


Não, definitivamente não. O português “pseudo-garboso” do vendedor-orador do Rio de Janeiro não é o mesmo português dos fados de Portugal ou o da periferia moçambicana. E o documentário, de fato, evidencia essa conjectura. Aliás, o cenário das vicissitudes das tantas línguas portuguesas é mais do que legitimado por um dos grandes nomes da prosa da “última flor do Lácio”. Diz José Saramago, escritor: “não há língua portuguesa, há línguas em português”. Ora, se Saramago assim sentencia, o documentário aponta para mesma direção: os diferentes modos de falar a “língua-mãe” não são comuns. São únicos.



Assista ao trailler do filme na TV UOL.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

CICLOVIA: A MORTE ESTÁ AO LADO

PARTE III - FINAL


[... guarda esse que não percebera nada incomum naquela tarde antes da repentina chegada da viatura do POVO em frente de sua guarita]

Mas o guarda não pôde deixar de notar as tantas pessoas que passaram a acompanhar o mistério do cadáver. E passaram a se juntar, umas atraídas pelas outras. E passaram a reparar em cada detalhe daquele cenário. E passaram a antever as próximas ações.

Diante dos olhares da gente entretida pela mesma razão, a escada extensível do caminhão foi rebaixada até o fundo do fosso, uns cinco metros abaixo. O soldado Mazepa desceu. Mas, ao descer do bombeiro, a atenção se voltou à outra cena bizarra: um rato tentava subir o primeiro dos degraus da escada. Era o esforço “sobrenatural” do roedor para alcançar os 30 centímetros que o separavam de uma tentativa de fuga. Sem êxito. A água do esgoto, impregnada em seu pelo, o fazia escorregar.

O soldado chegou perto do corpo. Bem perto. Olhou. E nada mais. Apenas os peritos teriam a permissão para abordagem e remoção do cadáver. Muito tempo depois a viatura da Polícia Científica finalmente chegou. E demorou a chegar.

Deram, pois, início à perícia na área onde repousava o cadáver, realizando uma série de procedimentos de análise criminalística. Eram os costumeiros exames periciais realizados por quem leva a vida se deparando com a morte. Entre baforadas de um cigarro recém-aceso, um dos legistas sentenciava: “Morreu! Morreu o fia da puta”! A sangue frio, o homem ria da morte que, a ele, era apenas mais uma.

Coleta, identificação e checagem de possíveis evidências. Fotos e anotações e hipóteses. No caso do homem jogado no canal do Belém, apenas burocracia. Nada se podia supor sobre a origem do morto. Não aparentemente. Não antes de uma análise mais profunda e contundente, que, possivelmente, nem aconteceria. Era um corpo. Apenas mais um corpo. Um corpo que não faria falta.

Pouco além, entraram em cena os legistas do Instituto Médico Legal. Além dos visíveis hematomas nas costas, os peritos encontraram marcas de violência na cabeça e no rosto desconfigurado. À tardinha, quase no crepúsculo daquela noite de verão, removeram o corpo que, mais tarde, não seria identificado. Talvez por falta de evidências suficientes que pudessem apontar conclusões sobre o crime. Talvez por falta de relevância daquela morte. Daquele resto de vida largado no esgoto.

Em tempo: só no fim de semana do dia 8 de fevereiro, 26 assassinatos foram registrados na grande Curitiba. O cadáver da ciclovia foi relegado a uma nota despretensiosa e derradeira num jornal da cidade:
Mais um.

(Essa é uma história real.)

quinta-feira, 9 de abril de 2009

CICLOVIA: A MORTE ESTÁ AO LADO

PARTE II


[Os olhares mais atentos viram e não deixaram de enxergar: perto da grama verdinha que vende Curitiba, havia um corpo falecido, entre ratos e dejetos]

Uma viatura do Projeto POVO da Polícia Militar do Paraná chegou ao local, pouco depois dos chamados ao 190. Dois soldados, que estavam fazendo ronda na região dos bairros Juvevê e Cabral, desceram descontraídos do carro, ao som gritante de Miles away, música de Madonna. Era a trilha sonora do encontro entre os policiais e o corpo.
Logo, um caminhão da 1ª Brigada do Corpo de Bombeiros também ali estava. Dele, desceram quatro bombeiros soldados. Um, de pós-nome Mazepa, se prostrou à beira do canal, com o olhar escondido atrás de um óculos Ray Ban. Dali avistou o cadáver, que, a essa altura, atraía não apenas o bombeiro, mas também ciclistas e pedestres, entorpecidos pelo interesse indiscreto em saber o que acontecia. O que despertaria a atenção das pessoas na beira de um esgoto, em um domingo de sol?
A razão era a improvável presença de um homem morto. A cena, ainda que trágica, era excitante demais. E, agora, já não passava despercebida. Uma multidão de curiosos, a exemplo de João Paulo, Maicon e Jhonatan, se aglomerou à beira daquele trecho do rio. Estavam todos – cadáver e populares - a poucos metros de um posto da Secretaria da Defesa Social de Curitiba, onde um guarda municipal cumpria plantão; guarda esse que não percebera nada incomum naquela tarde antes da repentina chegada da viatura do POVO em frente de sua guarita.

(continua nos próximos posts)

quarta-feira, 8 de abril de 2009

DETENTAS DE PIRAQUARA COSTURAM A LIBERDADE



Tecidos apreendidos pela Receita Federal. Máquinas doadas. Fios de costura. E a perspectiva de um futuro mais digno. Assim, entre retalhos e esperança, um grupo de detentas da Penitenciária Feminina do Paraná costurou a liberdade para sonhar.

Capacitação profissional e inclusão social. Esses foram os objetivos do “Costurando a Liberdade”, um projeto que, durante 10 meses, transformou a penitenciária em um ateliê de alta costura. Uma parceria entre o Programa de Voluntariado do Paraná (Provopar) e a grife Gianni Cocchieri.

Ontem (7) o dia foi de ansiedade. De celebração. De reconhecimento. O Museu Oscar Niemayer abriu espaço para o desfile dos 45 looks confeccionados pelas detentas, sob a orientação dos profissionais da Gianni Cocchieri. Amarelos e roxos e verdes da esperança. Vestidos costurados um a um, por mãos que um dia se renderam a algemas.

Os convidados ao desfile puderam acompanhar de perto o resultado das lições de moda e de vida. A platéia aplaudiu efusiva em torno da passarela. As detentas, de dentro do presídio e acompanhando a transmissão simultânea, aplaudiram às voltas de lágrimas e sorrisos orgulhosos.

Com ensinamentos sobre um mundo, até então, distante, as mulheres de Piraquara se permitiram vislumbrar. Criar. Sorrir. E, hoje, estão capacitadas a costurar vestidos de alta costura e a deixar o obscuro passado para trás.

JORNALISMO MAIÚSCULO



Em celebração ao Dia do Jornalista, comemorado em 7 de abril, o PERIÓDICAS publica um texto de uma das mais brilhantes dessas profissionais.


Eliane Brum, repórter especial da Revista Época, mostra que, mais do que por fatos ou cenários, as histórias são feitas por pessoas. A jornalista se debruça no esmiuçar das tragédias e comédias de Zés e Marias, ofuscados pela sombra da mediocridade dos que reconhecem apenas as figuras notáveis como pautas relevantes.

A cada retrato de personagem esboçado, Eliane revela, em sutileza, que as vidas comuns, singulares em suas diferenças e extraordinárias mesmo em anonimato, são, sim, surpreendentes. "A vida que ninguém vê" pode ser mais colorida do que os fatos acinzentados narrados no dia-a-dia do jornalismo das notícias passageiras.

Ao desvendar a grandiosidade do ser humano em matérias de jornal, Eliane Brum dá a certeza de que um jornalismo mais humano é possível.

Boa leitura!

EVA CONTRA AS ALMAS DEFORMADAS

(...) Eva ingressou na universidade, mas não podia pagar. Por duas vezes lhe negaram o crédito educativo. Pediu transferência para uma mais barata. Eva sonhava em ser educadora. Queria ensinar como se podia escrever com as mãos em chagas. E fazer das mãos retorcidas asas. Mas muitas eram as almas disformes que se colocariam entre Eva e o mundo. A luta estava recém no começo e provavelmente não terá fim.

Ela ouviu e ouviu. Como vai escrever no quadro-negro tremendo desse jeito? Como vai ensinar com uma letra tão feia? Não vê que só vai incomodar? Não entende que entre você e uma menina normal vão escolher a normal? O que você quer? Vai passar a vida olhando para um diploma na parede? Eva ouviu tudo isso de uma educadora. Eva ouviu tudo isso na faculdade. Apenas para comprovar que a ignorância está onde menos se espera. Eva, a deficiente física, respondeu à deficiente de alma:

- Em primeiro lugar, eu não vou desistir. Em segundo, a vida é um risco. Não só para mim. Mas para todo mundo.

Eva demorou a descobrir por que sua tremedeira ameaçava tanto aqueles seres impávidos. Qual era a ofensa de sua fragilidade. Foi vilipendiada de todas as formas conhecidas e outras inventadas só para ela. Primeiro, impediram que fizesse estágio. Depois, só poderia fazê-lo numa escola de deficientes. Em seguida, decidiram que tinha de ser durante o dia porque sabiam que nesse horário ela trabalhava para pagar as contas. Por fim, como Eva não desistisse, desistiram eles de a impedir.

Quando o nome de Eva foi pronunciado na formatura, todos levantaram, gritaram, aplaudiram. Eva não ouviu. Todos os seus sentidos estavam concentrados em não cair. Atravessar aquele palco sem tropeçar era a metáfora de sua vida. Eva não cairia. Não ali. E Eva não caiu. (...)

* Matéria originalmente publicada em 14 de agosto de 1999
no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e reproduzida em
A Vida que Ninguém Vê (Eliane Brum, 2006)

- vencedor do Prêmio Jabuti de 2007 na categoria "Melhor Livro de Reportagem".

segunda-feira, 30 de março de 2009

CICLOVIA: A MORTE ESTÁ AO LADO

PARTE I


Curitiba, oito de fevereiro de 2009, um domingo de sol. Longe do mar e em um cenário como esses, visitar parques e praticar esportes se tornam umas das (poucas) opções de lazer no fim de semana da capital paranaense. Em direção a um dos 26 parques curitibanos, os mais de 100 km de ciclovias que atravessam a cidade são a atração mais movimentada aos sábados e domingos. Um programa gratuito, saudável e ecologicamente correto.

Bairro do Ahú, região central. Às margens do Rio Belém, na ciclovia que segue em direção ao Passeio Público, João Paulo, Maicon e Jhonatan pedalavam distraídos, como tantos outros meninos, em meio ao vai-e-vem de bicicletas. Os guris, no auge de seus 15 ou 16 anos, faziam daquela tarde de verão um dia para sair do Bairro Alto – onde moram – e passear, quase sem rumo, montados em suas bikes vermelho tijolo, verde metálica e bordô.

Mas já no caminho de retorno, uma paisagem se ergueu súbita em frente aos três; paisagem estranha ao que se costuma ver nas rotas dos ciclistas. João Paulo, Maicon e Jhonatan correram afoitos em direção ao inesperado. E se aproximaram o suficiente para avistarem, incrédulos, o corpo de um homem jogado no canal do Belém. Seria fúnebre demais para que fosse verdade. Mas era. Na galeria de um rio que há muito virou esgoto, repousava a carcaça de um cadáver.

E assim era o que se via: um homem de bruços, cabelo raspado à máquina, calça de moletom azul, camisa aos trapos manchada pela água suja e densa. Nos pés, um par de um modelo Nike Shox. No corpo de costas, aparentemente não havia marcas de sangue. Ainda assim, era possível ver uns quatro ou cinco hematomas inchados nas costas descamisadas. Por certo, resultado dos obstáculos no macabro percurso do corpo na canaleta do rio.

Como os três meninos, uma família que por ali passava também percebeu o homem, prostrado em sua morte. Os olhares mais atentos viram e não deixaram de enxergar: perto da grama verdinha que vende Curitiba, havia um corpo falecido, entre ratos e dejetos.
(continua nos próximos posts)