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sexta-feira, 1 de maio de 2015

CÚMPLICE



Eu não conseguia pegar no sono. Minha irmã já havia dormido. Ela parecia conseguir pegar no sono quando bem entendesse, uma habilidade que eu não tinha e invejava.

Neil Gaiman, “O Oceano no Fim do Caminho”


Uma mulher saiu de casa.
Uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa.
Uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa e nos deixou aqui. 
Uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa e nos deixou aqui eu e minha irmã. 
A mulher é a nossa tia.
A nossa tia sai de casa quando pensa que estamos dormindo.

(eu sempre finjo que estou dormindo um pouco antes da minha tia sair às vezes até acabo cochilando a minha irmã que é minha irmã mais nova é muito medrosa sorte é que ela nunca acordou das outras vezes em que a nossa tia saiu acho que ela pega no sono quando bem entende)

Esta noite, uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa e nos deixou aqui eu e minha irmã.
Acordados.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

VERTIGEM


A foda das minhas noites
É o foda dos meus dias.

REGINA


Na Rua da Imperatriz
A mãe era a rainha.

A RELEITURA DE CURITIBA


  
Por circunstância da qual pouco lembro, dia desses precisei deslocar-me das cercanias do Juvevê para os prados do Bairro Novo B. Rumo ao até então desconhecido, pensei, naquela manhã, estar vivendo uma legítima expedição de descobrimento: partira de uma Curitiba familiar em direção a uma que a mim era distante, embora tão próxima a tantos outros conterrâneos. A campanha foi longa – digna dos tropeiros! -, entre bocejos, páginas de um livro, três ou quatro linhas de ônibus e reflexões sobre a cidade em que nasci, vivo e redescubro a cada dia, rua e morador.
Distraída com as paisagens estampadas por trás da vidraça rabiscada, a sensação era a de estar diante de uma improvável Curitiba nova. Sim, improvável; ora, não poderia ser novo o meu berço gentil! Mas, assim como ocorre desde que criei minha primeira noção de cidade, lá nos idos dos 300 anos, a terra das Araucárias e dos vampiros despiu-se novamente e revelou-se outra. Ou melhor, também outra. Afinal, Curitiba é uma e diferente a cada descobrimento.
E descobrimento é, se não, uma nova possibilidade de leitura. Ao invés de descobrir, naquela manhã eu, em verdade, reli Curitiba. Assim como a releio em Trevisan, Xavier e Leminski. Assim como a reinterpreto em todo terminal, parque, boteco ou ladrilho da XV. A ideia que sustentamos a respeito de algum lugar pode ser remodelada à medida que damos vazão para outras interpretações possíveis, a partir das novas experiências.  
O desafio reside em permitir-se abrir espaço para revelações quando o olhar está viciado nos julgamentos e soluções simplistas e pouco inspiradores. Remédio não-paliativo para a vista mundana é o exercício contínuo e indelével da leitura; de livros, de filmes, da cidade, de gente, da gente.
Ler – seja lá qual for o objeto a ser decifrado (de Dostoievski ao Osternack) - não apenas cria e fortalece o repertório cultural ou literário de cada um. Ler também provoca novas e, muitas vezes, dantes improváveis perspectivas de interpretação, dilatando as retinas do olhar condicionado ao comum e voltando-as a vieses sutis de análise de, por exemplo, fatos cotidianos, relações sociais, conjunturas históricas e políticas, entre outros.
A metafórica dilatação das perspectivas do olhar, possível a partir da relação íntima com a literatura e com as artes em geral, enriquece as possibilidades de interpretação do mundo e dos múltiplos universos nele contidos. No caso dos amantes de polaquinhas e catataus, o contato com o fabuloso derruba preconceitos e potencializa a releitura da Curitiba perdida e das diversas cidades nela escondidas. No caminho de norte a sul, o ledor simplista apenas julga o rincão distante; o leitor, fruto dos livros e da vida, redescobre a cidade.
Quando leitores são tropeiros em busca de novos horizontes, debruçar-se sobre as linhas vertiginosas da literatura e imbuir-se dos prazeres da leitura são expedições de descobrimento.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

DIFERENTES



Pode ser – ou certamente é – um tanto tarde para rememorar a viagem que fiz no último março. A ocasião, porém, mostra-se propícia; a entrada de um novo tempo tende a ser – e certamente é – a instância ideal para que se olhe para trás e se reflita sobre o que de melhor ou mesmo de pior ocorreu no ano findo. Às margens da virada, retrospectivas de toda sorte invadem a TV, os impressos, as timelines e as reminiscências coletivas, fazendo-nos refletir sobre aquilo que não volta, mas que, quando bom, permanece.
Quiçá o correr de dez meses desde as chegadas e partidas europeias tenha ofuscado algumas minúcias da minha expedição. Já não sei nomear alguns lugares por onde andei, restaurantes em que comi, coletivos que tomei. O tempo, no entanto, não apagou as delícias de uma experiência que, como diria a canção, deixou o gosto e as fotos, além do vibrante anseio de que se repita o quão breve.
Dia desses, dentre tantas coisas das quais eu já não me lembrava mais, veio-me à mente o exato instante em que desci do avião na pista do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Momento sutil, felicidade clandestina. O vento cortante daquele dia 2 de março pareceu-me entrar por cada um de meus poros. Era o átimo que separava quimera e realidade: eu estava, sim, na Europa, ainda que teimasse em não acreditar. O frio imediato sentido depois da rajada, gélida, nada mais foi que o cartão de boas-vindas ao Velho Continente, obnubilado sob o clima nublado que se mostraria onipresente no fim do inverno europeu. O vento que surrou o corpo, marcou para sempre a alma.
Paris, na ocasião, ainda não se despiria; fora apenas uma pausa antes da conexão para Cardiff - a dantes desconhecida capital do País de Gales, prado legítimo da rainha-mãe assim como Inglaterra, Escócia e Irlanda do Norte. Acolhedora, Cardiff foi a primeira escala da incursão que durou 28 dias e percorreu, além da terra dos galeses, também ruas, avenidas e o cotidiano de Inglaterra (em Londres), França (em Paris) e Espanha (em Madrid).
As ruminações, desde então, tornaram-se contínuas. Perenes. As novas vivências dilataram minhas retinas. Depois da viagem, passei a contemplar os dias através das lentes glaucas e enriquecedoras trasladas frente ao meu olhar. Quem viveu coisa semelhante, seja lá em que lugar e circunstância, bem sabe o que os ares e até os ventos de uma terra incógnita provocam: partimos uns, voltamos outros. Melhores? Diferentes.


Musée du Louvre, Paris. Março de 2012.


domingo, 5 de agosto de 2012

A SAGA DO MEU C.U.



Pois lembrei-me de quando eu descobri que os meus nomes do meio, Carolina Ulandovski, viravam C.U. quando abreviados – e do quanto isso podia ser pejorativo. Primeiro, há de se enfatizar o hábito que se tem de abreviar o nome das pessoas - seja por falta de espaço (ora, se não há lugar suficiente para escrevê-los por inteiro, que se abreviem os pós-nomes), seja por pura preguiça. O meu caso? Anna C.U. Azevedo. Sim; o meu nome oficial no boletim da pré-escola, na carteirinha do clube, no grupo escoteiro, no cartão transporte e até mesmo no cartão da minha conta bancária! Decerto, Sueli Regina (vulgo mãe) não estava atenta a esse detalhe tão imprescindível quando foi me registrar.
Enfim, a pequena Anna estava na 2ª série. Ao fim do bimestre, a professora entregava aos pais um envelope com todas as atividades que o aluno desenvolvera naquele período. Fui para casa, feliz e orgulhosa com o meu envelope em mãos, na ânsia de mostrar os trabalhinhos à Sueli. Na frente do envelope, um coelho com bolinhas de crepom. E um Anna C. U. bem vistoso, escrito com caneta hidrográfica em letras cursivas. No auge da minha inocência pueril, eu não tinha percebido nenhum problema. Tinha até achado a letra da professora linda! Mas, quando cheguei em casa, a dura realidade: duas tias minhas começaram a rir do meu C.U. à mostra. E a pobre da criança sem saber o porquê – afinal, se eu sequer sabia o significado do cu comum a todos, quem dirá eu entenderia a relação entre ele e o meu C.U.?
A partir daquele dia, passei a conhecer a imensidão de piadinhas que uma pessoa que tem um C.U. no meio do nome tem de ouvir durante a vida. Mas, se antes eu escondia, hoje não tenho o menor pudor: sou Anna C.U. com muito amor.