Minha filha não volta
para casa há mais de quinze dias. Eu estou tentando entrar em contato, ligo para
o celular dela. Nem sinal. Ela é assim: às vezes some, vai para Londres e fica
dias sem voltar, perdida pelos pubs de Camden Town. Dessa vez, deixou o filho
aqui comigo. O pequeno Jason chora a todo instante, chamando pela mãe. Eu não
sei onde Jessica está, nem quando vai voltar. Peço desculpas.
Ao fundo da ligação, uma criança grita em desespero. Pelo
que parece, a garota sumiu. E com ela, Eclipse, de Stephenie Meyer, cuja devolução está pendente. É um livro bastante procurado
pelas adolescentes galesas. Jessica precisa voltar. Sua multa já chegou a dois
pounds.
Assim como Jessica, muitos usuários tardam
a devolver os títulos que emprestam. Alguns, por poucos dias. Outros passam
semanas sem aparecer. Há quem leve mais de ano para retornar. Viagem, doença,
acidente, distração, talvez o frio dos últimos tempos. Acontece.
Meu nome é Lucy. Minha missão aqui na Cardiff
Central Library é a de avisar aos leitores ausentes que um exemplar de nosso
acervo permanece em sua posse há mais tempo do que deveria permanecer. Atrasos,
obviamente, não são tolerados. Mas acho que nem todos sabem disso. Se
soubessem, eu perderia meu emprego.
É
importante que o livro esteja conosco de volta o quão mais breve. Qualquer
pessoa pode trazê-lo. A multa é de 10 pence por dia de atraso. Aceitamos
doações de títulos britânicos - da trilogia de J.R.R. Tolkien a Virginia Wolf e
Huxley. A biblioteca fica aberta de segunda a sábado. Aguardamos a
devolução.
Todos os dias, quando chego a The Hayes - o
largo onde se localiza a Cardiff Central Library -,
espero ansiosa pelas desculpas com as quais os caros retardatários tentarão
justificar suas pendências. A de Jessica, ontem, foi a mais comovente da
semana. Não sei se pelo abandono do filho. Ou se pelo tamanho da lista de
espera dos próximos leitores de Meyer. É incrível como, diante de um acervo com mais de
dez mil itens em galês, a nossa língua-pátria, as mocinhas de hoje em dia
insistam em ler esses best-sellers americanos. Como diria Orwell, mais
rasteiros que as novelas de Ethel M. Dell!
Um cara chamado George emprestou, vinte dias
atrás, um clássico de Orwell, seu xará ilustre. Até hoje, não o devolvera,
tampouco dera satisfação sobre o sumiço. Tomei o telefone para pedir que Keep
the aspidistra flying voltasse para a prateleira dos romances ingleses da
década de 30. Era a minha primeira chamada da manhã.
Lucy, você não vai acreditar! Caí da minha
moto na semana passada, foi bem feio. Ainda não estou bem. Mas, assim que eu
melhorar, faço questão de levá-lo pessoalmente e também de quitar meu débito.
De fato, eu não acreditei. No inverno, as
motos eram raras nas ruas de Cardiff. E sobre acidentes com motociclistas, eu
não havia lido sequer uma nota no Wales OnLine. Além disso, qual parte de
“qualquer pessoa pode trazê-lo” George não entendeu? Da gentileza típica aos
britânicos, eu abria mão. Porém, da multa, não - ou alguns pounds seriam descontados do
meu próximo ordenado.
A vez, agora, era de Ann, 20 anos, cadastro
recentíssimo e um atraso logo no primeiro empréstimo. Harry Potter.
Estive em Newport no último sábado e acabei
esquecendo o livro com a minha prima. Eu sinto muito. Vou pedir para que ela
venha a Cardiff para trazê-lo, não se preocupe. Obrigada por me lembrar!
Foi sincera, ao menos. Com Ann, não me
preocupei. Quem causou preocupação maior foi a próxima da lista: a mal-falada
Shana Davis.
Shana era uma desvairada, conhecida por
todos que frequentavam os arredores da Queen Street. Vivia trôpega, bêbada e
molhada pelas ruas do centro da cidade, entre goles de Irish whiskey e Foster
Beer quente, que deixavam a criatura com um bafo digno do dragão vermelho da
bandeira de Gales. Em seu bolso, apenas um penny. Um paupérrimo penny! Shana e o penny. Shana miserável!
Era simplesmente inadmissível que ainda emprestassem
exemplares para aquela louca. Ela rasurava todos os livros que levava consigo.
Shana porca! Um dia, eu ainda a proibiria de entrar na biblioteca – quer dizer,
isso se eu conseguisse passar por cima dos diretores da Cardiff Central
Library. Eles, assim como tantos outros homens e até algumas mulheres, eram encantados por Shana. Shana
maldita!
O
telefone chama. Um toque. Nada de Shana. Outro. Ao terceiro, finalmente
atendem.
Shana?
Ah, ela não está. E eu também não faço a menor ideia de onde você poderá
encontrá-la.
Shana
desgraçada! Partira, poucos dias antes, com um marinheiro que aportara na
Cardiff Bay. Em meio à raiva que me consumia, eu até podia imaginar a manchete
no Wales OnLine: “Shana em fuga”! E o pior: em fuga com o livro que eu
tinha como missão resgatar. O bendito, um título tão raso quanto ela: Os dez
mandamentos do amor, por Little Dick Junior.