Espetáculo curitibano coloca em cena uma cidade à beira do abismo e os traços biográficos de Wilson Bueno
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Stéfano Belo, no tortuoso papel de Bueno, é um dos destaques no espetáculo. Foto: Humberto Araujo/Clix. |
Curitiba, meu amor, nós estamos
predestinados.
Estamos predestinados ao seu falso
luxo, ao seu lixo, às suas rixas, às suas bichas. Aos seus clichês. Aos seus
últimos michês.
Nosso amor, meu amor, está oculto,
no entanto, sob uma redoma de esteriótipos. De falsos-títulos. De
falsos-moralismos. Ao invés de nos assumirmos amantes, devassas, prostramo-nos
(ou, pelo menos, fingimos nos prostrar) estáveis tais quais pinheiros. Estanques.
Estancados.
Por que nos acovardamos,
travestidos em papéis que não são os nossos? Por que o ódio à atriz, se atuamos
todos nós nessa terra de disfarces? Por que o julgamento, se estamos todos
diante da sarjeta?
Em vida, Wilson Bueno não se
acovardou. Optou por flertar com o precipício e fez de sua obra um “diário
vagal” – ou a poética do fracasso –, destituído de qualquer idealização ou
etiqueta sobre essa cidade de aparências. Uma cidade para a qual não há
salvação, nem heróis. Nas narrativas de bares e boleros, revela-se o escritor
que, ao invés de se resignar à hipocrisia do cartão-postal, percorreu as
vísceras de uma Curitiba perturbadora, à margem.
Em cena, a parceria entre a
Selvática Ações Artísticas e O Estábulo de Luxo escarrou, sem covardia, a
podridão da capital em um espetáculo revolto, envolto em dores e devaneios. Em
sua primeira sessão na Curitiba Mostra, nas instalações do Guairacá Cultural,
Pinheiros e Precipícios fez com que o público se inquietasse com a inquietude
dos traços e tramas de Bueno. Na confusão de putas e demônios, bairros e becos,
eis o universo que permeou vida e obra de um dos principais nomes da literatura
paranaense.
Dirigido pelo inquieto (no melhor
dos sentidos) Ricardo Nolasco, o espetáculo se reveste de simbologia, manifesta
em elementos cênicos mais ou menos óbvios. O ritmo das teclas da máquina de
escrever, o entrar e sair do armário, as canções de inferninho, os traços
quebradiços em giz, o tilintar de moedas, o incômodo riscar da faca, o tombo do
pinheiro são opções estéticas que ajudam a reconhecer – se não racionalmente,
pelo menos intuitivamente – a aldeia buenista. Junto à performance do elenco
principal (com destaque para as atuações de Patricia Saravy, Jeff Bastos e
Stéfano Belo) e à onipresença de um coro de bestas-feras, a composição caótica
esboça um labirinto que percorre os caminhos da poética tanto de Bueno, quanto
da Selvática e d’O Estábulo – talvez, as companhias curitibanas mais creditadas
a revirar nossas entranhas com tamanha autenticidade, sem meios-termos. Faz
muito sentido que as linhas de Bueno tenham ganhado fôlego dramático pelo sopro
de dois grupos que fazem da arte a resistência, o desbunde, a ode à decadência da
capital.
A dramaturgia apresenta tramas que
ora se alternam, ora se beijam, como o esboço de uma produção literária, como o
arquejo de uma vida. Mescladas às passagens biográficas, certas paisagens de
Bolero’s Bar e Mano, a noite está velha se desenham em uma hora e meia de
espetáculo. No precioso texto de Francisco Mallmann, os territórios de Bueno
revelam-se ainda mais (in)tensos e lembram que o que está em jogo não é o
pinheiro a prumo mas, sim, o seu declínio. O descompasso de uma capital à beira
do abismo. O ativismo cênico e literário de artistas que não se curvam à
“cidade-modelo”.
Por isso, tão verdadeiros. Wilson
Bueno, Selvática e O Estábulo de Luxo. Por isso, tão predestinados. A Curitiba.
A essa sórdida Curitiba.