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sexta-feira, 1 de maio de 2015

CÚMPLICE



Eu não conseguia pegar no sono. Minha irmã já havia dormido. Ela parecia conseguir pegar no sono quando bem entendesse, uma habilidade que eu não tinha e invejava.

Neil Gaiman, “O Oceano no Fim do Caminho”


Uma mulher saiu de casa.
Uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa.
Uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa e nos deixou aqui. 
Uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa e nos deixou aqui eu e minha irmã. 
A mulher é a nossa tia.
A nossa tia sai de casa quando pensa que estamos dormindo.

(eu sempre finjo que estou dormindo um pouco antes da minha tia sair às vezes até acabo cochilando a minha irmã que é minha irmã mais nova é muito medrosa sorte é que ela nunca acordou das outras vezes em que a nossa tia saiu acho que ela pega no sono quando bem entende)

Esta noite, uma mulher confiando em nosso sono saiu de casa e nos deixou aqui eu e minha irmã.
Acordados.

terça-feira, 17 de julho de 2012

DEVOLVA MEUS LIVROS



Minha filha não volta para casa há mais de quinze dias. Eu estou tentando entrar em contato, ligo para o celular dela. Nem sinal. Ela é assim: às vezes some, vai para Londres e fica dias sem voltar, perdida pelos pubs de Camden Town. Dessa vez, deixou o filho aqui comigo. O pequeno Jason chora a todo instante, chamando pela mãe. Eu não sei onde Jessica está, nem quando vai voltar. Peço desculpas.

Ao fundo da ligação, uma criança grita em desespero. Pelo que parece, a garota sumiu. E com ela, Eclipse, de Stephenie Meyer, cuja devolução está pendente. É um livro bastante procurado pelas adolescentes galesas. Jessica precisa voltar. Sua multa já chegou a dois pounds.
Assim como Jessica, muitos usuários tardam a devolver os títulos que emprestam. Alguns, por poucos dias. Outros passam semanas sem aparecer. Há quem leve mais de ano para retornar. Viagem, doença, acidente, distração, talvez o frio dos últimos tempos. Acontece.
Meu nome é Lucy. Minha missão aqui na Cardiff Central Library é a de avisar aos leitores ausentes que um exemplar de nosso acervo permanece em sua posse há mais tempo do que deveria permanecer. Atrasos, obviamente, não são tolerados. Mas acho que nem todos sabem disso. Se soubessem, eu perderia meu emprego.

É importante que o livro esteja conosco de volta o quão mais breve. Qualquer pessoa pode trazê-lo. A multa é de 10 pence por dia de atraso. Aceitamos doações de títulos britânicos - da trilogia de J.R.R. Tolkien a Virginia Wolf e Huxley. A biblioteca fica aberta de segunda a sábado. Aguardamos a devolução.

Todos os dias, quando chego a The Hayes - o largo onde se localiza a Cardiff Central Library -, espero ansiosa pelas desculpas com as quais os caros retardatários tentarão justificar suas pendências. A de Jessica, ontem, foi a mais comovente da semana. Não sei se pelo abandono do filho. Ou se pelo tamanho da lista de espera dos próximos leitores de Meyer. É incrível como, diante de um acervo com mais de dez mil itens em galês, a nossa língua-pátria, as mocinhas de hoje em dia insistam em ler esses best-sellers americanos. Como diria Orwell, mais rasteiros que as novelas de Ethel M. Dell!
Um cara chamado George emprestou, vinte dias atrás, um clássico de Orwell, seu xará ilustre. Até hoje, não o devolvera, tampouco dera satisfação sobre o sumiço. Tomei o telefone para pedir que Keep the aspidistra flying voltasse para a prateleira dos romances ingleses da década de 30. Era a minha primeira chamada da manhã.

Lucy, você não vai acreditar! Caí da minha moto na semana passada, foi bem feio. Ainda não estou bem. Mas, assim que eu melhorar, faço questão de levá-lo pessoalmente e também de quitar meu débito.

De fato, eu não acreditei. No inverno, as motos eram raras nas ruas de Cardiff. E sobre acidentes com motociclistas, eu não havia lido sequer uma nota no Wales OnLine. Além disso, qual parte de “qualquer pessoa pode trazê-lo” George não entendeu? Da gentileza típica aos britânicos, eu abria mão. Porém, da multa, não - ou alguns pounds seriam descontados do meu próximo ordenado.
A vez, agora, era de Ann, 20 anos, cadastro recentíssimo e um atraso logo no primeiro empréstimo. Harry Potter.

Estive em Newport no último sábado e acabei esquecendo o livro com a minha prima. Eu sinto muito. Vou pedir para que ela venha a Cardiff para trazê-lo, não se preocupe. Obrigada por me lembrar!

Foi sincera, ao menos. Com Ann, não me preocupei. Quem causou preocupação maior foi a próxima da lista: a mal-falada Shana Davis.
Shana era uma desvairada, conhecida por todos que frequentavam os arredores da Queen Street. Vivia trôpega, bêbada e molhada pelas ruas do centro da cidade, entre goles de Irish whiskey e Foster Beer quente, que deixavam a criatura com um bafo digno do dragão vermelho da bandeira de Gales. Em seu bolso, apenas um penny. Um paupérrimo penny! Shana e o penny. Shana miserável!
Era simplesmente inadmissível que ainda emprestassem exemplares para aquela louca. Ela rasurava todos os livros que levava consigo. Shana porca! Um dia, eu ainda a proibiria de entrar na biblioteca – quer dizer, isso se eu conseguisse passar por cima dos diretores da Cardiff Central Library. Eles, assim como tantos outros homens e até algumas mulheres, eram encantados por Shana. Shana maldita!
O telefone chama. Um toque. Nada de Shana. Outro. Ao terceiro, finalmente atendem.
 
Shana? Ah, ela não está. E eu também não faço a menor ideia de onde você poderá encontrá-la.

Shana desgraçada! Partira, poucos dias antes, com um marinheiro que aportara na Cardiff Bay. Em meio à raiva que me consumia, eu até podia imaginar a manchete no Wales OnLine: “Shana em fuga”! E o pior: em fuga com o livro que eu tinha como missão resgatar. O bendito, um título tão raso quanto ela: Os dez mandamentos do amor, por Little Dick Junior.