conteúdos da página PERIÓDICAS: Crítica
Mostrando postagens com marcador Crítica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Crítica. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 13 de julho de 2022

E A LITERATURA?

Desde 2019 sem edital exclusivo para a área, Fundo Municipal da Cultura não contempla a cena literária de Curitiba


Por Anna Carolina Azevedo

Conselheira Municipal de Cultura pela Regional Boa Vista e

membra do Foro Setorial de Literatura | Curitiba/PR


O Programa de Apoio e Incentivo à Cultura (PAIC), criado e instituído pela Lei Complementar n.º 57 de 2005, é a instância municipal responsável pelos mecanismos de incentivo à produção artística em nossa cidade.


Gerido pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC), compete ao PAIC a implementação de editais públicos voltados ao fomento e à difusão de bens culturais nas linguagens de Artes Cênicas (Teatro, Dança, Ópera e Circo), Artes Visuais, Audiovisual, Cinema, Literatura, Música e Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, além de uma categoria única e generalista que contempla Folclore, Artesanato, Cultura Popular e demais Manifestações Culturais Tradicionais.


São dispositivos do PAIC para o apoio e o incentivo a projetos culturais: 1) Fundo Municipal da Cultura, o qual garante a canalização de recursos oriundos da Lei Orçamentária Anual (LDO) destinados ao próprio fundo - em 2022, pouco mais de 0,25% da receita municipal; e 2) Mecenato Subsidiado, o qual autoriza a captação de recursos junto a empresas sediadas em Curitiba, por meio da renúncia fiscal do ISS e do IPTU - de acordo com a LDO 2022, foram destinados R$ 13.550.000,00 ao mecenato.


Os Editais referentes ao Mecenato Subsidiado, nas categorias Iniciante e Não Iniciante, são promovidos anualmente e contemplam projetos nas linguagens artísticas previstas pelo PAIC.


Em relação ao Fundo Municipal, todos os anos são lançados editais de ordens variadas, os quais deveriam, de maneira equânime, contemplar todas as linguagens - das Cênicas ao Folclore. No entanto, isso não vem acontecendo como se deveria esperar. Tome-se, por exemplo, o caso da Literatura.




Os últimos editais do Fundo Municipal exclusivamente voltados à Literatura foram realizados, respectivamente, em 2019 (Edital “Múltiplas Ações em Literatura e Leitura”) e em  2018 (Edital “Incentivo à Leitura”). Ou seja, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com as linguagens de Música e Teatro, contempladas com editais anuais, os agentes da cena literária de Curitiba - editores, livreiros, autores, tradutores, oficineiros, bibliotecários, mediadores de leitura, contadores de histórias, slammers, produtores e pesquisadores de ações de Literatura, entre outros - não são beneficiados com editais do fundo há três anos.


O cenário se agrava ainda mais se pensarmos na criação de escritores e escritoras: o “Edital Livre”, de 2015, foi o último que previu, em suas categorias, publicações literárias inéditas. Há, portanto, uma conduta de negligência por parte da Comissão do Fundo Municipal de Cultura em relação às letras curitibanas, seu desenvolvimento e o reconhecimento sociocultural dessa linguagem artística que é e sempre foi destaque em nossa cidade - dos já canônicos Dalton, Leminski e Luci à efervescência de coletivos contemporâneos como o Slam das Gurias, Marianas, Membrana e tantos outros.


O Foro Setorial da Literatura indigna-se ao ver uma nova rodada de editais do Fundo Municipal a serem lançados sem contemplar uma multidão de agentes que atuam por ela na cidade de Curitiba. Outra vez. Por isso, mais do que nunca, cabe a pergunta: Fundação Cultural de Curitiba, e a Literatura?

segunda-feira, 25 de abril de 2016

DA PODRIDÃO, FAZ-SE PINHEIROS E PRECIPÍCIOS

Espetáculo curitibano coloca em cena uma cidade à beira do abismo e os traços biográficos de Wilson Bueno


Stéfano Belo, no tortuoso papel de Bueno, é um dos destaques no espetáculo. Foto: Humberto Araujo/Clix.

Curitiba, meu amor, nós estamos predestinados.
Estamos predestinados ao seu falso luxo, ao seu lixo, às suas rixas, às suas bichas. Aos seus clichês. Aos seus últimos michês.
Nosso amor, meu amor, está oculto, no entanto, sob uma redoma de esteriótipos. De falsos-títulos. De falsos-moralismos. Ao invés de nos assumirmos amantes, devassas, prostramo-nos (ou, pelo menos, fingimos nos prostrar) estáveis tais quais pinheiros. Estanques. Estancados.
Por que nos acovardamos, travestidos em papéis que não são os nossos? Por que o ódio à atriz, se atuamos todos nós nessa terra de disfarces? Por que o julgamento, se estamos todos diante da sarjeta?
Em vida, Wilson Bueno não se acovardou. Optou por flertar com o precipício e fez de sua obra um “diário vagal” – ou a poética do fracasso –, destituído de qualquer idealização ou etiqueta sobre essa cidade de aparências. Uma cidade para a qual não há salvação, nem heróis. Nas narrativas de bares e boleros, revela-se o escritor que, ao invés de se resignar à hipocrisia do cartão-postal, percorreu as vísceras de uma Curitiba perturbadora, à margem.
Em cena, a parceria entre a Selvática Ações Artísticas e O Estábulo de Luxo escarrou, sem covardia, a podridão da capital em um espetáculo revolto, envolto em dores e devaneios. Em sua primeira sessão na Curitiba Mostra, nas instalações do Guairacá Cultural, Pinheiros e Precipícios fez com que o público se inquietasse com a inquietude dos traços e tramas de Bueno. Na confusão de putas e demônios, bairros e becos, eis o universo que permeou vida e obra de um dos principais nomes da literatura paranaense.
Dirigido pelo inquieto (no melhor dos sentidos) Ricardo Nolasco, o espetáculo se reveste de simbologia, manifesta em elementos cênicos mais ou menos óbvios. O ritmo das teclas da máquina de escrever, o entrar e sair do armário, as canções de inferninho, os traços quebradiços em giz, o tilintar de moedas, o incômodo riscar da faca, o tombo do pinheiro são opções estéticas que ajudam a reconhecer – se não racionalmente, pelo menos intuitivamente – a aldeia buenista. Junto à performance do elenco principal (com destaque para as atuações de Patricia Saravy, Jeff Bastos e Stéfano Belo) e à onipresença de um coro de bestas-feras, a composição caótica esboça um labirinto que percorre os caminhos da poética tanto de Bueno, quanto da Selvática e d’O Estábulo – talvez, as companhias curitibanas mais creditadas a revirar nossas entranhas com tamanha autenticidade, sem meios-termos. Faz muito sentido que as linhas de Bueno tenham ganhado fôlego dramático pelo sopro de dois grupos que fazem da arte a resistência, o desbunde, a ode à decadência da capital.
A dramaturgia apresenta tramas que ora se alternam, ora se beijam, como o esboço de uma produção literária, como o arquejo de uma vida. Mescladas às passagens biográficas, certas paisagens de Bolero’s Bar e Mano, a noite está velha se desenham em uma hora e meia de espetáculo. No precioso texto de Francisco Mallmann, os territórios de Bueno revelam-se ainda mais (in)tensos e lembram que o que está em jogo não é o pinheiro a prumo mas, sim, o seu declínio. O descompasso de uma capital à beira do abismo. O ativismo cênico e literário de artistas que não se curvam à “cidade-modelo”.
Por isso, tão verdadeiros. Wilson Bueno, Selvática e O Estábulo de Luxo. Por isso, tão predestinados. A Curitiba. A essa sórdida Curitiba.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A CATARSE HERMANA EM CURITIBA

Em noite inspirada, quarteto toca os grandes sucessos e arrebata a multidão



Antes tarde do que ainda mais tarde, decidi registrar minhas impressões sobre a mais do que esperada e já memorável apresentação do Los Hermanos no festival Lupaluna, em Curitiba, na última sexta-feira (18). Ou melhor: no irromper da madrugada de sábado (19), pois passava da meia-noite quando os músicos subiram ao palco LunaStage para levar ao delírio os milhares de fãs saudosos da banda, que não se apresentava na capital paranaense desde 2006.
         Embora eu tenha evitado conferir o setlist que rolou nas outras cidades pelas quais a turnê em comemoração aos 15 anos de trajetória dos Hermanos até então tinha passado, não resisti à tentação de passar a tarde de sexta ouvindo o registro do show na Fundição Progresso (Sony BMG, 2007). Com isso, acabei meio que prevendo o repertório reservado para o show no Bioparque – afinal, ainda que se concentre no álbum 4 (Sony BMG, 2005), a seleção do dvd resume bem a história musical do bloco de Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante, Bruno Medina e Rodrigo Barba.
         Apesar da minha torcida (que, em si, já esperava por uma noite, no mínimo, inesquecível), eu não imaginava que o show seria ainda mais surreal do que as minhas expectativas – sem exagero. O Los Hermanos correspondeu à devoção apaixonada da plateia, que não precisou de mais do que os dois primeiros acordes de “O Vencedor” para deixar claro que acompanharia a banda por toda a apresentação, mesmo sob o frio e o sereno curitibanos.
         Depois de um hiato que se prolongava desde a última apresentação dos barbudos, no festival SWU, em 2010, o grupo se mostrou entrosado e muito afim de estar ali, tocando e curtindo a noite, o público e as músicas. A seleção do repertório, os acordes afinados e a dedicação em fazer um bom show consolidaram ainda mais o pensamento de que eu estava diante de um concerto ímpar.

Depois de quase seis anos sem tocar na capital paranaense, o Los Hermanos voltou a Curitiba para fazer uma apresentação memorável. Foto: Lupaluna 2012 (Divulgação)

         Ao todo, foram 19 canções executadas, acompanhadas pelos músicos de apoio (Bubu: trompete; Mauro Zacharias: trombone; Índio: saxofone e clarineta e Gabriel Bubu: baixo, guitarra e voz) e cantadas em uníssono pelo público. Com oito de suas 15 faixas, não foi de se espantar que o álbum Ventura (BMG, 2003) tenha dominado o setlist apresentado no show de Curitiba (o mais curto da turnê, diga-se), afinal é considerado por muitos fãs – inclusive por mim – o mais completo da banda.
         A surpresa (ou nem tão surpresa assim, vide o próprio Fundição Progresso) foi a execução de quatro canções em sequência do álbum de estreia, Los Hermanos (Abril Music, 1999), iniciada pelo megahit “Anna Julia” - que catapultou o quarteto no cenário musical brasileiro e que, durante algum tempo, fora deixada de lado pelo grupo. De Bloco do Eu Sozinho (Abril Music, 2001) e 4, apenas os clássicos: “Todo Carnaval Tem Seu Fim”, “A Flor” e Sentimental (senti falta de "Casa Pré-Fabricada"); “O Vento”, “Morena” e “Condicional”, respectivamente. E antes que pensem que eu errei nas contas, na sequência das introspectivas rolou “Descoberta”, também do primeiro álbum.
         Dentre tantos momentos marcantes no show do Los Hermanos, eu destacaria os já tradicionais confetes e serpentinas que voaram tão logo Camelo entoou os versos do melancólico fim do carnaval, a catarse coletiva em “Sentimental”, “Conversa de Botas Batidas” e "Último Romance" e o momento em que Rodrigo Amarante pulou do palco para, junto aos fãs, cantar “Quem Sabe”. Apoteótico! Isso sem deixar de citar a cumplicidade entre a dupla de compositores e vocalistas, seja trocando olhares, notas e sorrisos, seja interagindo entre si e com os outros integrantes, o baterista Barba e o tecladista Medina (que, em seu twitter, chegou a lamentar a distância do público em relação ao palco).

Bruno Medina (no detalhe), o "quinto hermano" Gabriel Bubu, Camelo - em uma das músicas em que toca baixo - e Amarante no vocal. Foto: Lupaluna 2012 (Divulgação)

         Tenho a impressão de que a apresentação dos Hermanos apesar de curta foi a melhor do festival e olha que eles pouco interagiram com o público. E digo isso não apenas por razões pessoais e "catárticas"; o espetáculo foi musicalmente impecável, além de surreal para os fãs. Ao final de apenas 1h15 de show, ficou a certeza de que a maioria dos espectadores da plateia do LunaStage esteve ali para acompanhar o quarteto, talvez a banda mais representativa do rock brasileiro da década de 2000. Ficou, ainda, a sensação de que esse será um daqueles shows inesquecíveis na vida de quem a ele assistiu. E cantou. E pulou. E se emocionou. "Assim é que se faz"!

quinta-feira, 24 de maio de 2012

RUBEM FONSECA E O SEU EXTERMINADOR


Por Anna Carolina Azevedo


O Exterminador, texto do mineiro de alma carioca Rubem Fonseca, é, sem dúvidas, um exemplar bastante característico das verves temática e estilística do autor.


É preciso enfatizar, antes de qualquer análise textual - formalista ou exegética -, que Fonseca redige esse conto em um contexto de forte censura e cerceamento à produção cultural brasileira. Nesse cenário de pouca ou quase nenhuma liberdade intelectual, uma das formas que a literatura encontra para abordar questões polêmicas - das quais não se podia tratar abertamente, sob pena de repreensão - é o uso de ficções alegóricas, repletas de crítica, ironia e humor negro. É a esse tipo de recurso que o autor recorre no enredo de O Exterminador para tratar, ainda que por meio de uma representação, de certa forma, simbólica, sobre a violência que se instaurara no Brasil às vésperas do Ato Inconstitucional 5 (o qual entraria em vigor no fim de 1968, no governo Costa e Silva).
Sob a ótica de um narrador onisciente – que conhece, portanto, todos os detalhes e vieses da trama -, O Exterminador revela uma visão pessimista de um futuro não-datado (que se infere a partir de passagens como “era tão elaborado quanto o dos antigos astronautas”), em que a violência e a crueldade tornaram-se banais. Considerando o fato de que foi escrito durante o período mais cruel da ditadura militar, pode-se dizer que o texto é uma alegoria, que dialoga com o gênero da ficção científica, de situações de brutalidade que ocorriam naquele período de turbulência decorrente da opressão militar e da reação a ela.
O conto, nesse sentido, é extremamente crítico quanto à questão da violência latente. Mas o interessante é que o autor, no entanto, não escorrega na armadilha do pieguismo apelativo e sensacionalista da maioria dos relatos de torturas da época. N'O Exterminador de Rubem Fonseca, não há a necessidade de ser mais apelativo do que aquela perspectiva de realidade que, em si, já causa choque. Pelo contrário: é o afastamento emocional que suscita o efeito de desconforto no leitor. A indiferença à violência choca.
Fonseca vale-se de um realismo mórbido - que, em sua obra, chega a ser atraente - para narrar sequências inseridas numa estrutura de narrativa policial. O foco narrativo articula-se em terceira pessoa, na figura de um narrador impessoal e objetivo. As atividades dos dois lados do confronto – comando militar e os exterminadores (uma espécie de comando civil) - são descritas, mas não há juízo de valor sobre os personagens. Essa imparcialidade, aliás, sugere a leitura crítica de que qualquer tipo de manifestação violenta é absurda, independente da bandeira que se pretende defender.
A banalização da morte, representada de maneira hiperbólica e explícita, pode ser considerada, além de uma crítica à própria violência da época dos confrontos da ditadura, também uma condenação/oposição ao discurso da mídia sensacionalista que, ao contrário da objetividade de Fonseca, dilacerava as histórias violentas em detalhes grotescos e sanguinários, como se a tragicidade do episódio não bastasse. Aliás, sob esse aspecto, pode-se até definir O Exterminador - também publicado em  O conto brasileiro contemporâneo, de Alfredo Bosi (Cultrix, 2006) - como brutalista quanto ao assunto abordado, mas não em relação à maneira de tratá-lo.
Quanto aos personagens, nenhum possui descrições detalhadas e não se pode afirmar o que pensam ou sentem. De tal modo, nenhum deles é passível de culpa ou remorso. O protagonista, Exterminador R., é caracterizado tão somente por suas habilidades (seja com a arma ou na facilidade em assumir qualquer papel, por exemplo). O distanciamento confere frieza à narrativa. 

1 O Exterminador colocou a automática num coldre especial nas costas, logo acima da região glútea. A arma ficava deitada, o cabo para a direita ou para a esquerda, indiferentemente: o Exterminador atirava com as duas mãos. Com incrível rapidez, o Exterminador sacou a sua 54 Superchata, apontando-a para o peito do Cacique. O Cacique nem piscou. 

A estrutura do texto é um pastiche de uma descrição oficial, tal qual um delegado responsável o estivesse narrando a um escrivão. O vocabulário técnico utilizado lembra um boletim de investigação e o uso insistente de siglas nos diálogos pode até sugerir a impressão de que os personagens não querem que leigos compreendam o que estão dizendo. A pulverização das siglas ao longo do texto aponta para uma ridicularização crítica do autor quanto à presença excessiva delas nos discursos oficiais, policiais e até jornalísticos no período da ditadura militar. E Fonseca tem calibre para tal: o autor trabalhou durante algum tempo na Polícia do Estado do Rio de Janeiro; experiência que lhe rendeu a familiaridade com os assuntos dos gabinetes dos distritos policiais e, principalmente, a habilidade em parodiar um discurso em que foi escolado.
No conto, DEUS é uma sigla para um dito “Departamento Especial Unificado de Segurança”, GASPAR é abreviação para “Gás Paralisante” e IE-IE-IE significa “Irritante Epidérmico Triplo Concentrado” – tiradas claras em relação à igreja, à política e à cultura. Em um ambiente tão criptografado e repleto por mensagens codificadas, nem os próprios usuários das siglas saberiam mais o que é vocábulo, o que é sigla e o que é significado – quanto mais os leigos; circunstância não muito diferente da falta de ordem e de clareza dos discursos oficiais do fim da década de 60, um período obscuro da História do Brasil. Fonseca, imbuído de frieza e ironia típicas à sua literatura, soube criticar o caos social e intelectual de maneira tão certeira quanto o Exterminador R. com a sua 54 Superchata.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

DO JORNALISMO, COMO EU O VEJO – OU GOSTARIA DE VÊ-LO



Em uma sociedade livre e democrática, na qual a mídia detém grande alcance de veiculação, o jornalismo representa muito além do simples (e, por vezes, meramente burocrático) fruto do labor diário de um repórter. O jornalismo, mais do que campo de atuação profissional, é serviço de valiosa função social. Isso porque cabe ao jornalismo não apenas o informar, mas também o formar; não somente o pautar, como ainda o apontar, o debater, o refletir, o denunciar, o educar, o servir, o entreter. Ao cabo, cabe ao jornalismo a relevância e a responsabilidade de atuar na construção de uma sociedade mais consciente e na formação de cidadãos mais atentos ao seu papel no mundo.
Parece certo, pois, que o jornalismo deva apontar para a análise dos conflitos mundiais e para as consequências dessas situações em nosso cotidiano, de modo a incitar o leitor a situar-se como membro de uma comunidade global e a entender-se como cidadão - pelo menos, em uma tese que, em si, é um tanto inspiradora. No entanto, além de suscitar a cidadania que existe em cada um, o jornalismo deveria voltar-se para o que há de humano e de (in)comum em cada um; o revelar do colorido de uma trajetória anônima, o dia-a-dia dos Josés e Marias, as histórias cujas tramas se desenham nas ruas dos bairros, além dos limites dos rincões da vida que ninguém vê.
A prática de um jornalismo mais orgânico representa um parâmetro oposto à brevidade ou ao cerimonialismo que parecem imperar nos textos dos jornais atuais. Ao contrário dos resumos lacônicos e efêmeros dos leads e sub-leads, a reportagem pode valer-se de uma narrativa pormenorizada, que extrapole a frieza dos dados técnicos e, por vezes, chatos das pautas. No exercício de emulação de fatos reais, o texto jornalístico ideal - pelo menos a mim e a quem busca verdade nas linhas grises das gazetas e tribunas - deve expressar detalhes de pessoas, situações, cenários, trejeitos, cores, texturas, cheiros e outras perspectivas sutis. São essas nuances as quais possibilitam a arquitetura de uma narrativa a partir de elementos literários e em consonância com as prerrogativas da qualidade da informação aos leitores. E, o principal: que conferem humanidade ao jornalismo.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

LÍNGUA: VIDAS EM PORTUGUÊS

Documentário exalta diversidade da "nossa língua portuguesa"







Rio de Janeiro, Brasil. Em uma tarde por demais ensolarada, um homem de camisa branca, caprichosamente abotoada até o colarinho, discursa para uma platéia distraída. Passageiro de um ônibus que trafega pelas ruas do Leblon, ele carrega uma carga de balas de morango, separadas em pacotes menores que custam cinquenta centavos cada.


Esse homem oferece as balas aos seus, quem sabe, compradores por meio da fala pedante que, se não atrai pela cena comum em tantos coletivos, surpreende pela persuasão da venda. Ele fala atropelando o estigma do “mero vendedor”, sentenciando seu dicionário esforçadamente rebuscado que, por instantes, lhe confere ares de orador. O homem das balas se detém na tentativa, honesta e desajeitada, de dispensar fino trato não apenas à aparência, quase que ridiculamente engomada. Sua verdadeira elegância está na articulação de seu principal instrumento de trabalho: a língua portuguesa, patrimônio pessoal do vendedor carioca e de outros 200 milhões de habitantes espalhados pelo mundo. Pessoas separadas pela distância, mas unidas pelo idioma falado.


Essa é uma das cenas esboçadas em Língua: Vidas em Português, documentário luso-brasileiro (2002) que mostra que a língua que une pelo vocabulário, pela sintaxe ou por qualquer outra instância gramatical é a mesma que diferencia e confere identidade a povos distantes em suas culturas e em modos de vida.


A peça, dirigida pelo documentarista moçambicano Victor Lopes, expõe em depoimentos de falantes do português, ilustres e anônimos, as relações entre língua e sociedade, na tentativa de estabelecer aspectos em comum dentre a vida certamente distinta nos países que adotam a Língua Portuguesa como um de seus idiomas.


Ainda que o português falado no Brasil, em Portugal, em Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Macau (China), Goa (Índia) ou em outros lugares tenha origens mesmas, ele não é o mesmo. Cada um desses “portugueses” utilizados por povos tão diversos está carregado pela cultura de seus falantes, permeado por heranças íntimas de nacionalidade, edificado em um chão de uma pátria única. Os países são vários. As culturas são ricamente diversificadas. Os esquemas sociais são diferentes. A língua, pois, assim também o é. Mesmo com a alcunha comum, chamada de “Língua Portuguesa”, a língua de povos incomuns não é comum. Ou melhor: é comum em sua origem, em seu passado. Mas o português, já há muito, não é o mesmo em tantos lugares.


Não, definitivamente não. O português “pseudo-garboso” do vendedor-orador do Rio de Janeiro não é o mesmo português dos fados de Portugal ou o da periferia moçambicana. E o documentário, de fato, evidencia essa conjectura. Aliás, o cenário das vicissitudes das tantas línguas portuguesas é mais do que legitimado por um dos grandes nomes da prosa da “última flor do Lácio”. Diz José Saramago, escritor: “não há língua portuguesa, há línguas em português”. Ora, se Saramago assim sentencia, o documentário aponta para mesma direção: os diferentes modos de falar a “língua-mãe” não são comuns. São únicos.



Assista ao trailler do filme na TV UOL.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

JORNALISMO MAIÚSCULO



Em celebração ao Dia do Jornalista, comemorado em 7 de abril, o PERIÓDICAS publica um texto de uma das mais brilhantes dessas profissionais.


Eliane Brum, repórter especial da Revista Época, mostra que, mais do que por fatos ou cenários, as histórias são feitas por pessoas. A jornalista se debruça no esmiuçar das tragédias e comédias de Zés e Marias, ofuscados pela sombra da mediocridade dos que reconhecem apenas as figuras notáveis como pautas relevantes.

A cada retrato de personagem esboçado, Eliane revela, em sutileza, que as vidas comuns, singulares em suas diferenças e extraordinárias mesmo em anonimato, são, sim, surpreendentes. "A vida que ninguém vê" pode ser mais colorida do que os fatos acinzentados narrados no dia-a-dia do jornalismo das notícias passageiras.

Ao desvendar a grandiosidade do ser humano em matérias de jornal, Eliane Brum dá a certeza de que um jornalismo mais humano é possível.

Boa leitura!

EVA CONTRA AS ALMAS DEFORMADAS

(...) Eva ingressou na universidade, mas não podia pagar. Por duas vezes lhe negaram o crédito educativo. Pediu transferência para uma mais barata. Eva sonhava em ser educadora. Queria ensinar como se podia escrever com as mãos em chagas. E fazer das mãos retorcidas asas. Mas muitas eram as almas disformes que se colocariam entre Eva e o mundo. A luta estava recém no começo e provavelmente não terá fim.

Ela ouviu e ouviu. Como vai escrever no quadro-negro tremendo desse jeito? Como vai ensinar com uma letra tão feia? Não vê que só vai incomodar? Não entende que entre você e uma menina normal vão escolher a normal? O que você quer? Vai passar a vida olhando para um diploma na parede? Eva ouviu tudo isso de uma educadora. Eva ouviu tudo isso na faculdade. Apenas para comprovar que a ignorância está onde menos se espera. Eva, a deficiente física, respondeu à deficiente de alma:

- Em primeiro lugar, eu não vou desistir. Em segundo, a vida é um risco. Não só para mim. Mas para todo mundo.

Eva demorou a descobrir por que sua tremedeira ameaçava tanto aqueles seres impávidos. Qual era a ofensa de sua fragilidade. Foi vilipendiada de todas as formas conhecidas e outras inventadas só para ela. Primeiro, impediram que fizesse estágio. Depois, só poderia fazê-lo numa escola de deficientes. Em seguida, decidiram que tinha de ser durante o dia porque sabiam que nesse horário ela trabalhava para pagar as contas. Por fim, como Eva não desistisse, desistiram eles de a impedir.

Quando o nome de Eva foi pronunciado na formatura, todos levantaram, gritaram, aplaudiram. Eva não ouviu. Todos os seus sentidos estavam concentrados em não cair. Atravessar aquele palco sem tropeçar era a metáfora de sua vida. Eva não cairia. Não ali. E Eva não caiu. (...)

* Matéria originalmente publicada em 14 de agosto de 1999
no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e reproduzida em
A Vida que Ninguém Vê (Eliane Brum, 2006)

- vencedor do Prêmio Jabuti de 2007 na categoria "Melhor Livro de Reportagem".

segunda-feira, 16 de março de 2009

MEMÓRIAS PÓSTUMAS: O OSCAR DE HEATH LEDGER



Já era de se esperar – ou, no mínimo, de se suspeitar. Na cerimônia do Oscar® 2009, a Academia de Ciências Cinematográficas de Hollywood reconheceu Heath Ledger como o melhor ator coadjuvante do ano anterior. Um Oscar, porém, infelizmente póstumo.

Ledger foi premiado por sua já memorável atuação em “Batman - O Cavaleiro das Trevas” (The Dark Knight – EUA, 2008). Filme que, não fosse a interpretação do ator, certamente não causaria tanta repercussão. Aliás, “O Cavaleiro das Trevas” acabou por ser um dos melhores filmes do ano. A atuação de Ledger na pele do enigmático Coringa é uma das mais marcantes para um personagem do gênero – ou alguém se lembra de atuação melhor em uma aventura de super-heróis?


O australiano morreu em janeiro de 2008 e não chegou a ver a (boa) impressão que o seu Coringa despertaria diante da crítica mundial. A morte, causada por uma overdose acidental de remédios, se deu cinco meses antes da estréia do filme.

Heath Ledger estrelou a lista dos cinco melhores atores coadjuvantes concorrentes à estatueta ao lado de nomes já consagrados, como Robert Downey Jr. - indicado por “Trovão Tropical” (Tropic Thunder – EUA/Alemanha, 2008) –, e Philip Seymour Hoffman, por “Dúvida” (Doubt – EUA, 2008). Acabou superando a performance de seus colegas.

Até a cerimônia do Oscar® 2009, apenas Peter Finch havia recebido premiação póstuma: em 1976, a academia agraciou o trabalho de Finch em "Rede de intrigas" (Network – EUA, 1976), dois meses após o ator sofrer um ataque cardíaco fatal.

Ledger já fora indicado ao Oscar por sua atuação em "O Segredo de Brokeback Mountain" (Brokeback Mountain - EUA, 2005), na pele do cowboy Ennis Del Mar. Naquela ocasião - edição de 2006 -, o ator concorreu ao prêmio de melhor ator, sendo, no entanto, vencido por Philip Seymour Hoffman pelo filme “Capote” (Capote – EUA, 2005). Ironia ou não, o mesmo Hoffman que, no Oscar® 2009, não superou o brilhantismo de Ledger e seu Coringa. Pelo menos, não na visão quase unânime da academia e de cinéfilos espalhados pelo mundo.